Buscar no Cruzeiro

Buscar

Devaneios

17 de Novembro de 2018 às 00:01

Edgard Steffen

Estou ótimo! Faz dois anos que quase não morro. (Ruy Castro em entrevista no Programa do Jô)

Ruy Castro é um dos meus escritores prediletos. A frase que ilustra este texto, é a forma como respondia aos que o saudavam com o afetivo “Como vai?”. Pudera, depois de ter vencido o alcoolismo, o tabagismo, a dependência de drogas, um infarto, dois cânceres (língua e próstata) ainda encontrou força -- ajudado pela esposa -- para vencer encefalite viral que pretendia levá-lo à última morada. Cronista da trilha musical das noites cariocas, vivenciadas em sua mocidade, coleciona livros e discos. Tudo anota com estilo claro e direto. Aparenta saber tudo sobre showbiz do século 20. Atém-se aos fatos sem julgá-los. Seja numa extensa biografia ou na coluna que mantém nos jornais. Biógrafo fiel à realidade vivida pelo biografado apresentou-nos à vida de astros e roteiristas do cinema (Saudades do Século 20), ao insuperável jornalista dramaturgo Nelson Rodrigues (Anjo Pornográfico), ao problemático enigmático João Gilberto (Chega de Saudade) e aos dribles e diabruras ingênuas de Mané Garrincha (A Estrela Solitária). Posso pular textos e páginas, mas a terceira coluna da A2 na FSP considero leitura obrigatória. Prazerosa, diverte-me. Factual instrui-me.

Desde que fui alfabetizado, leio jornais. Os focos de leitura foram variando com a idade. Comecei nos quadrinhos, charges de Belmonte, esportes, amenidades culturais até chegar a leitura da primeira à derradeira página. Meus filhos, plugados na modernidade, preferem a leitura eletrônica. Para eles os e-jornais são mais fáceis de ler (com o que não concordo), estão sempre a mão e os permitem melhor selecionar assuntos de interesse pessoal.

Um dos filhos, quando me vê sentar na poltrona e abrir diários, brinca: “Ô, pai, já vai ler notícia ruim!?”. Completa “Antigamente só os jornais populares, nas bancas, vertiam sangue quando comprimidos”.

Lembrei-me dele quando li “Acordando com o Rádio”, texto do Ruy sobre o tempo em que as principais notícias vinham pelo rádio. Morte de Getúlio Vargas, de Chico Alves por exemplos. A atual interação com os ouvintes, resultou em relatos irrelevantes ou de interesse restrito ao local do acontecimento. Notícias chatas, desagradáveis*(sic). O cronista preferiria notas e textos sobre paisagem, flores, mar, peixes, casais apaixonados e outras belezas que acontecem no dia a dia do Rio, mas não são notícia.

Resolvo imitá-lo, pedindo adrede perdão pela ousadia. O que eu gostaria de ler (ou assistir, no caso da TV) nos jornais? Em vez do assassinato do médico benemérito, São Paulo voltasse àquela terra da garoa onde se podia andar às desoras sem ser morto, agredido ou importunado. Em lugar do estúpido massacre e morte de seu jogador, que o time do São Bento fosse campeão da 2ª Divisão.

Em vez do garimpo de chumbo e área deteriorada, aves enchessem de cantos e cores a mata ciliar e muitos peixes saltassem na piracema do rio Sorocaba. Agressores, vândalos e pichadores, substituídos por usuários oferecendo flores aos abnegados profissionais da educação e da saúde. O direito de ir e vir assegurado para todos, em todas as ruas em todas as horas...

Puros devaneios. Possíveis? -- Quando o bicho-homem deixar de ser bicho.

(*) Castro, R -- FSP -- 12/11/2018 -- pag. A2

Edgard Steffen é médico pediatra e escreve aos sábados neste espaço -- [email protected]