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Desperdício

05 de Novembro de 2020 às 00:01

Desperdício Crédito da foto: “A persistência da memória" (1931) de Salvador Dalí - Reprodução / Internet

Leandro Karnal

É revoltante como nós, um País com gente miserável, desperdiçamos comida. O que vai para o lixo, diariamente, resolveria grande parte dos problemas de milhares de famintos. Comida é algo fundamental. Há outro valor que devemos considerar: o tempo. Um dia, posso reciclar sobras de alimentos e aproveitar cascas. Porém, o tempo, matéria-prima da vida, é impossível de ser substituído.

Se alguém atirasse, da sacada do seu apartamento, grossos bifes à rua, seria insultado por todas as testemunhas. “Louco!”, gritariam alguns; “porco!”, insultariam outros. O desperdício de alimentos incomoda. A carne pode ser comprada de novo. Alguns cachorros da rua adorariam a insanidade do arremessador de proteína. O tempo? Vou pensar em uma solução.

Um amigo me liga e diz que tem duas notícias, uma boa e outra ruim. Indaga qual eu desejaria ouvir primeiro. Lá se foram alguns minutos de vida que não voltarão. Ele me contará as duas e a ordem delas não altera em nada o conhecimento que farei de ambas. Para acelerar e evitar debates, disse que poderia contar a ruim primeiro. Ele insiste: “Tem certeza?”. Tenho certeza de que eu já poderia saber de tudo e ainda estaria um instante mais jovem. Ele completa: “Então, vai lá, foi você quem pediu, vou falar a ruim. Está preparado?”. Estava, quando atendi ao telefone. Agora me sinto irritado. Esse é um exemplo banal de diálogos que atravessam o dia todo. Somados ao longo de uma vida, talvez, proporcionassem...outra vida. O grande Millôr Fernandes escreveu que quem “mata o tempo, não é um assassino, é um suicida”. É uma sábia percepção do criativo carioca.

A vida social implica certas formalidades e retóricas. Aceito a premissa. Há expressões inúteis a preencher o silêncio. E se ficássemos avaros com o tempo como o Harpagon, de Molière? Se cada minuto fosse encarado como uma nota preciosa de cem libras esterlinas? Mataríamos o tempo se ele fosse traduzido em metal sonante? Pior. Além da consciência algo burguesa do time is money, teríamos presente a noção filosófica de que o tempo é aquilo que constitui a vida? Ficaríamos melhores ou insuportáveis, se cada minuto soasse como um grão irretornável da ampulheta universal?

Nossa vida é nossa empresa. Imagino um interventor que assuma minha vida para evitar a bancarrota originada pelo esbanjamento temporal. A missão? Cortar os gastos / uso do tempo ao extremo.

Ele, o interventor nomeado, recebe as planilhas e as analisa por dias. Seu relatório é bombástico. O plano é detalhado. O primeiro demitido do plano de contenção será o celular. Ligações só em risco de vida se a sua interferência puder salvar do perigo, caso contrário, desnecessário avisar. São banidas mensagens de bom dia, piadas, correntes, textos de encorajamento, fotos. Quem tentar enviar, será bloqueado por seis meses, um ano na primeira reincidência e, insistindo, ostracismo para sempre. Expressões que não alteram dados concretos (bom dia, boa tarde, como você está? etc.) serão obliteradas. Sua funcionária em casa será treinada para picar tudo ao extremo, facilitando a digestão e deixando de lado firulas como primeiro prato e segundo prato ou o uso da faca. A comida estará disponível em um único prato fundo com uma colher. Você comerá sozinho, pois conversas à mesa esbanjam tempo sem sentido. O total das refeições diárias passará de duas horas para 20 minutos. Sem o celular excessivo e expressões de cordialidade, teremos mais 90 minutos extras. Em apenas duas medidas, seu dia terá algo como três horas a mais. O interventor já conseguiu muito com poucas medidas.

A comunicação escrita e oral terá de ser repensada. O agente abolirá adjetivos, advérbios, expressões sem sentido e embelezamentos retóricos. As reuniões da empresa serão virtuais. Enquanto o expositor fala, os outros podem fazer uma das refeições. Todos terão até dois minutos e devem dizer tudo. No início, o treino parecerá exaustivo. Com o tempo, a concisão será uma segunda natureza. Como dizer tudo em dois minutos? O preparo nas primeiras semanas será longo e parecerá desperdício. Depois, surgirá o fruto do esforço.

Todas as roupas serão tornadas iguais para impedir dúvidas ao se vestir. Haverá roupa quente, fria e meia-estação, todas da mesma cor. Por um mecanismo de automação, quando você pisar no banheiro o chuveiro será ligado já com alguma quantidade de sabão jorrando juntamente com a água. O banho estará limitado a dois minutos. Após, soará um alarme e, se o usuário insistir em permanecer com o chuveiro aberto, um choque não fatal e proporcional ao peso de cada pessoa descerá pela água condutora da medida educacional/corretiva. Com as novas medidas, somaremos mais duas horas de aproveitamento à planilha do dia.

Especialistas disporão de todos os seus gostos e necessidades para que os livros sejam previamente selecionados e você nunca passe pelo terror de começar um e abandonar, uma terrível perda de tempo. Haverá curadoria sobre filmes também, pois existirão tempos de lazer previsto e condicionados. A curadoria lúdica enfatizará, claro, curtas-metragens de até 15 minutos, intervalo suficiente para aprender uma ideia nova e relaxar um pouco.

Em resumo, graças ao novo programa, você não perderá tempo e terá muito mais liberdade para... Esse é um ponto curioso. O que resta quando temos tempo sobrando? Como ficam as pessoas que já fizeram tudo e ainda possuem horas de bônus? Bem, eu tenho uma boa e uma má notícia para dar a vocês... É preciso algum tempo e muita esperança...

Leandro Karnal é historiador e escritor.