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De quem é a história?

05 de Fevereiro de 2020 às 00:01

Crédito da foto: Glyn Kirk / AFP

Leandro Karnal

Para terminar nosso raciocínio e para dar sentido à reflexão até aqui, vamos finalmente ao ponto: vivemos novamente o perigo do negacionismo histórico. A história é viva, o passado não é imóvel e a memória pode ser dominada por interesses estranhos.

Hoje em dia, é muito comum ler ou ouvir que a história foi escrita por gente de esquerda, que manipulou o passado para criar uma narrativa que lhe servisse. Há verdade parcial no argumento. De fato, o Brasil carece de bons pensadores de direita, que tenham criado linhas racionais e sistemáticas de reflexão. Interrompe-se aí a verdade da frase.

Se escola sem partido tivesse razão e todos nós fôssemos doutrinados, ao menos teríamos alguma memória histórica: a dos vencedores. Já argumentei que nem isso temos. No Brasil, temos uma excelente historiografia, pesquisas realmente inovadoras e obras-primas.

Há muita coisa ruim também. No meio disso, deve haver pessoas tentando doutrinar, porém morrem na praia, acredite. Não há narrativa consensual sobre o passado. Nunca deveria haver. Evaldo Cabral de Mello debateu muito e publicamente com José Murilo de Carvalho.

O segundo é um monarquista, mais conservador em algumas posições, portanto. O primeiro sempre se ressentiu -- com alguma correção -- de que muito do que se chama de História do Brasil no século 19 é, na verdade, a história do Rio de Janeiro, com uma perspectiva da Corte.

Ambos são gigantes da historiografia com livros incontornáveis. Era lindo acompanhar os debates. Nenhum deles negou a importância da família real ou da escravidão para nossa história. Viam sob ângulos distintos, porém ambos evitavam a cegueira.

Outros lugares têm suas disputas também. Quer entender a Revolução Industrial? Leia Hobsbawm, historiador marxista genial e longevo. Leia também David Landes, um liberal, e seu monumental Prometeu Desacorrentado.

Ambos darão ênfase a questões distintas, discordarão em pontos centrais, como o papel dos cercamentos ou quem compunha a mão de obra operária. Nenhum dirá que a Revolução Industrial não existiu ou que seus efeitos não foram intensos.

O caro leitor e a querida leitora mais atentos já devem ter percebido meu ponto. Uma coisa é o enfoque, a discussão, o novo despertar de olhares a partir de novas questões do presente. Outra, completamente distinta, e muito perigosa, é negar o passado ou escrever uma versão alternativa para ele sem base documental qualquer. O passado, por não ter dono, não é estável, está sempre em disputa. Sempre importante lembrar: não se pode tudo.

Um longo e custoso processo montou alguns alicerces de nosso mundo no pós-Segunda Guerra. Direitos humanos, civis, sociais, políticos, a condenação do racismo, da homofobia, a igualdade entre gêneros. Todas essas invenções (pois não existiam antes de 1948; não ao menos como um grande consenso mundial) foram forjadas com muito sangue, suor e lágrimas.

Nos anos 1980, um primeiro ataque, filho da crise daquela década, passou a negar a existência do holocausto. O negacionismo é sempre filho de crises. Quando tudo vai bem, raivosos são silenciosos. Qual o interesse de negar algo tão documentado (por nazistas e por seus inimigos)? Ao inventar um passado sem holocausto, se inventava um passado que validava o racismo contra judeus ou que era mais leniente com o nazismo. A Europa respondeu de várias formas, mas em muitos países se tornou crime negar o holocausto.

Hoje em dia, em clima de nova “bolharização” e ainda lidando com efeitos da brutal crise de 2008, voltamos ao fantasma do negacionismo histórico, por vezes referido como revisionismo. Voltamos a ouvir que dizer que holocausto não existiu é liberdade de expressão.

Junto disso, que escravidão foi branda e benéfica para os negros; que ela já era praticada na África, logo os europeus não tiveram nada com isso. Que não houve ditadura. Temos canais de YouTube, com autodenominados filósofos/historiadores e toda uma sorte de pessoas que se acostumaram a dizer que esse negacionismo é apenas uma resposta “sem ideologia”.

Essas leituras do passado não são nem de direita ou de esquerda, em si. São, perigosamente, negacionistas. Negar não é tomar outro lado da história, é querer que a história tenha somente um lado, uma voz; distorcida e fantasiosa, portanto.

Existem narrativas variadas com enfoques variados e isso é ótimo. Impossível deixar de ler, se for do seu interesse, a “História da Segunda Guerra Mundial”, do conservador Winston Churchill, autor e ator do momento dramático. A Revolução Francesa precisa, para ser bem compreendida, da pena do liberal Adolphe Thiers, assim como do socialista Louis Blanc.

Robespierre foi herói ou ditador terrível? Varia se o autor for Eugène Despois, Alexis de Tocqueville, Ernest Renan ou Albert Soboul. Importante: nenhum deles negou que houve guilhotina durante o Terror. A história profissional pertence a todos que a pesquisam com método, senso crítico, bons arquivos, formação teórica e honestidade. O defeito de coisas como negacionismo do holocausto ou da ditadura não é de método, todavia de caráter. Muita esperança e boa história, sempre!

Leandro Karnal é historiador e articulista da Agência Estado.