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Das artes de servir e de ser servido

16 de Fevereiro de 2020 às 00:01

Das artes de servir e de ser servido Crédito da foto: Divulgação

Leandro Karnal

Imagine um atendente de restaurante. Ele é um analista da espécie humana. Como um psicólogo, ele vê desfilar uma extensa fauna humana. Ser um garçom ou uma garçonete é uma arte que inclui observar, dezenas de vezes por dia, as infinitas variedades da psique dos comensais diante do mesmo e trivial ato de decidir qual o prato do cardápio. Talvez em reuniões corporativas eles discutam os tipos. Vamos especular e cada um poderá identificar em qual gaveta seria enquadrado:

a) O apressado: abre o cardápio, escolhe a primeira coisa palatável que encontra e pede. O tempo é seu valor maior e se sobrepõe ao tema comida.

b) O lerdo: oposto ao anterior, abre o cardápio, porém resolve conferir mensagens ao celular. Quando o garçom volta, ainda não se decidiu e continua distraído. Depois de três aproximações do atendente, acaba lendo, lentamente, e pede sugestões.

c) O grupal: pergunta um a um o que deve decidir para comer. Faz uma enquete coletiva, debate a escolha, muda seu prato em função do que a média decide.

d) O inquiridor: pergunta todos os pratos, todos, literalmente. Quer detalhes de cozimento, ponto da carne, fornecedores, religião do chef e signo zodiacal do maître. Por vezes, visita a cozinha.

e) O ortoréxico: só come se souber que o azeite é extravirgem com certificado emitido pela associação mundial de azeites. As verduras devem ser lavadas sete vezes em água de degelo alpino e com luvas cirúrgicas. Os ovos devem provir de galinhas superfelizes que cresceram ouvindo Mozart. Quase nunca quer saber se o garçom é feliz.

Os tipos têm combinações entre si. O inquiridor também pode ser grupal e, com frequência, o ortoréxico se combina com o grupal e o inquiridor. Há subespécies, mas vamos focar nesses cinco.

Feita a decisão, o gentil garçom e a amável garçonete precisam escolher a atitude ao lado da mesa. Evitar sorrisos parecerá seco ou arrogante, gerará reclamações. Excesso de afetividade poderá ser visto como intromissão, algo que irritará alguns. Acima de tudo, deve se acostumar que as pessoas, com frequência, não olham no rosto e falam para baixo, murmuram inclusive, o que desejam.

Todo cliente é um chef em potencial. Pode recombinar pratos, retirar coisas essenciais, substituir o que desejar. O atendente deve ouvir coisas plausíveis como “cogumelo do tipo portobello, combinado com frango orgânico, causa-me azia. Prefiro shitake, desde que, claro, tenha crescido sobre eucalipto em decomposição, pois quando é sobre outra madeira provoca-me gases...”. Ou “eu quero bobó de camarão, porém sou alérgico a camarão”...

Os enobobos, claro, são um capítulo à parte. Deveria existir uma regra jurídica: colocaram vinho na taça e você agitou com violência imediata?

Sugiro perder o direito de opinar sobre vinhos por 15 refeições. Para cada enólogo há 10 mil enófilos e para cada enófilo 1 milhão de enobobos pretensiosos. O atendente deve aguardar com cara de paisagem que o especialista verifique a densidade da “lágrima” na taça, emita um parecer e aprove. Ou, pior, reprove!

Outra habilidade do bom garçom e da garçonete atenciosa é ficar atento o tempo todo. Se não observar imediatamente o leve gesto de mão ou não atender um ruidoso psiu, corre o risco de parecer indiferente. O mesmo indivíduo que levou meia hora para decidir o cogumelo quer a reposição da água em 4 segundos.

O contrato leonino é claro: tudo para um lado e nada para o outro. A refeição segue e, enfim, a conta é pedida. O vinho foi caro, o prato exorbitante, o estacionamento daria entrada para um carro popular, no entanto, o olhar recai sobre o valor da gorjeta. Na cadeia de valores, eis um elo frágil visível.

Apesar de folclóricos, os tipos e comportamentos que descrevi são, no máximo, excêntricos. Não descrevi os clientes grosseiros, mal-humorados ou francamente agressivos. A arrogância também almoça e janta, diariamente, em mesas nacionais e estrangeiras.

Existe um princípio brasileiro quase estrutural. Tudo o que estiver em contato com casa ou comida guarda uma herança colonial-escravista mais forte. As domésticas ganharam direitos décadas depois dos operários. A frase “não grita comigo porque não sou seu empregado” insiste na ideia de que é lícito gritar, desde que a pessoa seja seu/sua empregado/a. Crescemos muito no campo das relações trabalhistas, porém a casa e as relações de mesa ainda resistem, bem como o trabalho rural. É no campo que encontramos relações análogas à escravidão com frequência. É na casa e no restaurante que a casa-grande dá um suspiro saudosista. A figura ancestral é a do lacaio das cortes europeias, arrumado e mudo, sem vontade própria, um robô bem-vestido e eficiente.

A primeira regra da etiqueta, a mais importante de todas as diretrizes, é não constranger pessoas. Saber distinguir copo de vinho Borgonha de um Bordeaux, já disse várias vezes, sem tratar quem serve à mesa com dignidade, é ter aprendido o detalhe e equivocar-se no central. Escrevi este texto para mim, para eu pensar, para eu criticar minhas eventuais impaciências. Se mais alguém puder aproveitar, terei renovado minha esperança. No campo das relações humanas, todos precisamos crescer para além da arrogância e da sua prima envergonhada, a condescendência. Talvez... seja mais fácil suportar o cliente grosseiro do que o paternal com ares de superioridade...

Leandro Karnal é historiador e articulista da Agência Estado.