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Cotidiano

22 de Novembro de 2019 às 00:01

Neusa Gatto

Não havia na rua lugar que cheirasse pior. O fedor já se sentia ao passar na porta. A quitanda do seu Tomás era uma bagunça só. Na entrada, havia uma escada larga que ia de ponta a ponta entre as duas portas. Do lado esquerdo de quem entrava, duas enormes gaiolas com galinhas. Um barulho dos cocoricós junto com o cheiro forte do excremento das ditas cujas. Que, aliás, pouco devia ser limpo, dada a quantidade no piso da gaiola.

Pouco lugar pra muita coisa. Do espaço, que deixara pra poder abrir as portinholas do galinheiro, até o balcão lá atrás, perto da parede, tudo era ocupado. No centro, duas gôndolas com legumes, verduras... Frutas ficavam nas laterais, dos dois lados da parede. Um sufoco pra circular e ver o que se queria levar.

Era preciso pedir licença, seja pra quem parou no caixa, no meio do caminho a escolher os produtos... Na porta da entrada, o português, que parecia sempre estar suado, deixava um cacho de bananas. Cortava de acordo com o que vendia.

A garotada dava lá uns desfalques. Uma banana aqui pra comer, outra pra usar a casca no jogo da amarelinha... pequenas aventuras...

A uns 100 metros dali, seu Fuad abria sua loja sempre no mesmo horário de manhã. Com uma vareta de ferro empurrava a porta de ferro pra cima. Enorme barulho. Loja pequena mas sortida. Na frente, um expositor fechado com vidro mostrava os tecidos mais novos. Do lado esquerdo uma arara com plásticos que vendia a metro.

O balcão, todo de madeira, muito arranhado pelo tempo, dividia a loja em duas partes. A da frente pros fregueses e a detrás do comerciante com fita métrica, papel de embrulho, papel e o lápis que trazia na orelha pra fazer as contas pros fregueses. Muitos tecidos de vários tipos e estampas. Pra verão, inverno, meia estação. Vendia também lençóis, fronhas, toalhas, cobertores.

Uma lasquinha de ouro em um dos dentes da frente do libanês chamava a atenção. Homem de poucas palavras com o velho sotaque: “non póde sentar porta da loja”, falava ele pra alguma criança que se atrevesse a sentar no degrau que dava pra rua.

Talvez, quase certeza, seu Tomás e seu Fuad nem tenham se conhecido embora tivessem negócios tão próximos. Viviam praticamente pro trabalho. Numa época em que as colônias de imigrantes formavam muitos bairros de São Paulo, portugueses e libaneses eram bem presentes naquela vila. Ainda com poloneses, húngaros, italianos... que se reuniam muitas vezes apenas entre eles.

Em comum, no entanto, entre os dois, ficou a determinação. A disposição pra tocar em frente.

Hoje, no lugar da quitanda, há um sobrado. Na loja do Fuad, funciona uma doceria.

Ao fechar os olhos ainda se pode ver os dois. Seu Manoel com a camiseta branca suja que mal cobria sua enorme barriga. Sempre vermelho. A bufar. Jeito de que o banho sempre ficava pra depois. Seu Fuad, com a vassoura, a limpar a frente da loja. Com aquela blusa de lãzinha cinza, com botões na frente. Às vezes um charuto no canto da boca. De vez em quando, uma parada. Uma olhada pro céu e... vai chover de tarde, sentenciava ele, como sempre. E, quase sempre acertava.

Neusa Gatto é jornalista e produtora de vídeos.