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Bolsonaro, Trump e o PCC

02 de Novembro de 2018 às 14:09

Vanessa Tenor

Os americanos não perdem tempo e sinalizaram em menos de 24 horas ao presidente Jair Bolsonaro qual é a agenda da preferência deles. O tuíte de Trump para Bolsonaro falava em ‘military‘ e ‘trade‘ - em português, defesa e comércio. No dia seguinte o chefe da diplomacia americana, Mike Pompeo, pôs mais dois itens de caráter, digamos, ‘regional‘, mas os itens que mais importam na visão americana deste pedaço do mundo: Venezuela e crime organizado.

Por mais que a campanha de Bolsonaro tivesse se empolgado com aspectos que a tornavam similar à famosa vitória de Trump, a recíproca não é verdadeira. Em relação a Obama, que tanto adora detestar, Trump prossegue a mesma política no tocante ao Brasil: relativamente bem pouco interesse.

Quando falou do Brasil recentemente, Trump utilizou uma linguagem ameaçadora. Acabara de encurralar México e Canadá numa revisão do acordo comercial que engloba os países da América do Norte. E aproveitou, então, no seu tom triunfalista habitual, que iria agora ‘atrás de Índia e Brasil‘. Países que, na visão de Trump, tratam de maneira desleal empresas americanas.

A ameaça deve ser levada a sério: Trump alimenta profundo desdém por instituições multilaterais, a começar pela Organização Mundial do Comércio (OMC), tão cara ao Brasil nos últimos anos. E acredita que ao negociar pactos bilaterais tem melhores condições de barganha. No curto prazo, assinalam os críticos, a conta faz sentido. A longo prazo terá como provável consequência a articulação de aliados ou ex-aliados contra o que consideram bullying por parte do governo americano.

Ainda sob Obama, os americanos propuseram aos brasileiros uma espécie de ‘pacto estratégico‘, mas o então assessor de segurança nacional do presidente dos Estados Unidos saiu de Brasília conjecturando se os brasileiros haviam entendido a proposta. Qualquer possibilidade foi enterrada pouco depois com a espionagem da NSA sobre Dilma e outros, e o consequente irrecuperável mau humor da mandatária brasileira (que enterraria a compra de caças produzidos pela Boeing em favor dos caças suecos, por exemplo).

As queixas brasileiras sobre cooperação em defesa e tecnologia de ponta com os americanos são antigas: de que adianta cooperar e comprar, se na hora de revender produtos desenvolvidos a partir dessas tecnologias Washington exerce poder de veto. Recentemente, num seminário organizado pelo Ministério da Defesa brasileiro, a presidente da Boeing para esta região (e antiga embaixadora americana em Brasília) fez um reparo interessante: ‘Esse veto não vale para tecnologias militares desenvolvidas por parceiros nossos FORA do território americano‘ (o destaque é meu). Uma abertura? A conferir se Bolsonaro estará disposto a explorar, e a qual preço.

As outras questões são ainda mais espinhosas. Washington há tempos vem dizendo que a crise venezuelana é uma questão para ser resolvida pelos países próximos, ou seja, pelo Brasil em primeiro lugar (dado o que seria a ‘natural‘, hoje perdida, liderança brasileira nesta parte do mundo). Há um plano em Brasília de como lidar com a ditadura de Maduro? Em articulação com quais outras potências regionais? Ou organismos multilaterais?

Finalmente, é recorrente a preocupação americana com ‘segurança‘ hemisférica entendida sobretudo como ‘segurança pública‘: narcotráfico, crime organizado. No começo da semana, participei de conferencia internacional organizada por Paulo Sotero, diretor do Brazilian Center no Wilson Center (e antigo correspondente deste jornal em Washington), e de um diplomata do departamento de estado veio apenas uma pergunta.

‘Como Bolsonaro vai lidar com o PCC?‘ Pelo jeito, Washington já vê esse tipo de organização criminosa como um flagelo nacional. Aguardamos todos a resposta. Encerrada a campanha eleitoral, dá para resumi-la em duas palavras: fobia e philia. A fobia no passado e a filia do futuro. Fobia todo mundo sabe o que é e muita gente a padece. É pavor ou repulsa persistente de um objeto ou de uma situação. Daí, zoofobia (medo, por exemplo, de gato, cobra ou barata), claustrofobia (horror com lugares fechados) e homofobia (rejeição a homossexual).

O oposto de fobia seria philia, presente em certas palavras, como cinefilia (paixão pelo cinema), bibliofilia (amor aos livros) e a criminosa pedofilia. Essa meia palavra é tão grega como fobia, mas mereceu maior atenção dos filósofos. Aristóteles a define como a afeição por outra pessoa, que redunda em convivência íntima, agradável e benéfica. Ele exemplifica a philia como a ligação entre interessados num mesmo negócio, entre companheiros de viagem, entre companheiros de armas, membros da mesma sociedade religiosa, convivas do mesmo jantar e até o relacionamento de um sapateiro com o seu cliente mais fiel.

Mas é a philia por opção política que o filósofo aprofunda, considerando-a fundamental na vida tanto das pessoas como da cidade, a pólis. E é nessa luz que espero ver o Brasil pós-eleições. Até 28 de outubro, com tantas ameaças, tantas notícias falsas, tantos ataques pessoais, tanta guerra entre direita e esquerda, tanto ódio, com facada no começo e falcatrua até o fim, pode-se dizer que a nação viveu uma execrável fobia coletiva. Prevalecia o clima de aversão, quando não de agressão, ao outro politicamente divergente. Agora, eleito o novo presidente, precisamos redescobrir a philia, no seu sentido mais natural, bem nosso, bem brasileiro, de amizade.

Ódio, raiva, agressividade, maledicência e mágoas não reconstroem uma nação. Mesmo num governo autoritário, quem defende a democracia -- todos nós -- não tem arma na mão. A democracia é um espaço de inclusão social, de respeito à liberdade dos outros e respeito pelas minorias. Por incrível que seja, agora é tempo de brasileiro virar amigo de brasileiro, redescobrir a philia, sem a fobia da opção política diferente do outro.

Como salvar, então, a philia, num país agora politicamente rachado e com problemas gravíssimos que deveriam ser enfrentados também pelo candidato derrotado? Só pode ser com senso de responsabilidade e dedicação de todos pela mesma causa. Joga contra o País quem insistir em antagonismos corporativos, morais, ideológicos. Oposição deve haver e forte, mas não autocentrada e antipopular. A coesão democrática e republicana exige partidos e cidadãos que aceitem alternância de poder, sem taxar de inimigos grupos e pessoas de cabeça diferente.

Sempre achei exagero Roberto Carlos cantar “eu quero ter um milhão de amigos”, porque amigo de todos é amigo de ninguém. Cortemos, hoje, esse verso e cantarolemos os outros da mesma canção: “Quero levar o meu canto amigo/a qualquer amigo que precisar... eu quero crer na paz do futuro/eu quero ter um quintal sem muro/quero meu filho pisando firme/cantando alto, sorrindo livre... eu quero amor decidindo a vida/sentir a força da mão amiga....”

Essa força da mão amiga tem que enfrentar toda fobia do Governo, do Congresso Nacional e do empresariado, para salvar a vida de 12 milhões de desempregados, com a nossa mais séria e intensa philia.

William Waack é jornalista da Agência Estado e escreve para o Cruzeiro do Sul