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Um ministro terrivelmente evangélico

25 de Agosto de 2019 às 00:01

Um ministro terrivelmente evangélico Crédito da foto: Dorivan Marinho / SCO / STF

Leandro Karnal

O presidente Jair Bolsonaro prometeu um ministro evangélico no STF. Acrescentou o advérbio à profecia: “Terrivelmente evangélico”. A ideia provocou alguns debates nas redes e na imprensa.

O topo da pirâmide jurídica nacional, o STF, é ocupado por 11 pessoas que cumpram cinco exigências básicas: brasileiros natos, 35 a 65 anos na nomeação, ter direitos políticos, apresentar notável saber jurídico e, por fim, reputação ilibada. O Supremo é o guardião da Constituição e seu intérprete mais autorizado. É parte fundamental do equilíbrio dos poderes da República. Aqui nasce a primeira questão: os ministros (como de resto o Poder Judiciário em si) não são escolhidos pelo voto popular, diferentemente do Executivo e do Legislativo. As cadeiras são ocupadas por indicados pela Presidência e aprovados pelo Congresso. A recusa do Congresso é raríssima, tendo se concentrado no turbulento governo de Floriano Peixoto, nosso segundo presidente.

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O ministro típico do Supremo é um homem, branco, com formação em Direito em escolas públicas do Brasil. Como já foi dito, as condições para a indicação de um ministro não privilegiam gênero ou religião, orientação sexual ou quantidade de melanina. Assim, ninguém seria barrado por ser negro ou mulher, evangélico ou gay. Da mesma forma cabe a pergunta: alguém poderia ser apontado em função, por exemplo, do seu gênero? A questão é interessante.

A designação da carioca Ellen Gracie Northfleet, pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, foi um marco histórico. Era o ano de 2000. As mulheres ganharam direitos de voto no Código Eleitoral de 1932 e, passados “rapidíssimos” 68 anos, tínhamos uma mulher no STF. A nomeação pioneira foi ampliada e, hoje, há duas ministras no STF: Cármen Lúcia e Rosa Weber. Se você é otimista, dobramos a meta inicial. Para os pessimistas, há 51,7% de mulheres na nossa população. Haveria, ao menos, mais umas quatro acima de 35 anos, brasileiras natas, de reputação ilibada e notório saber jurídico? Um ministro negro também é avis rara naquele prédio. Exemplos? Pedro Lessa há um século, Hermenegildo Rodrigues de Barros, nas décadas de 1920 e 1930, e, por fim, Joaquim Barbosa, mais recentemente. Em um país de maioria da população negra, os tribunais são notavelmente claros.

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Volto à questão: não existem “cotas” para mulheres ou negros, evangélicos ou gays. Propor para o cargo uma mulher ou um negro é uma decisão política, de visibilidade, desejável do ponto de vista da cidadania, mas não obrigatória. É, de novo, um gesto político, não uma norma jurídica.

A questão incômoda não é, exatamente, se devemos pensar em ministros X ou Y, porém por qual exato motivo a sociedade brasileira está representada com peso masculino ou branco, distinta da sua realidade demográfica? Não se trata, no meu subjetivo entender, de indicar um negro ou uma mulher apenas porque são negros ou mulheres, mas imaginar se apenas homens brancos teriam mais de 35 anos, reputação ilibada e notório saber jurídico? Ou seja, minha posição é questionar a cota invisível para homens brancos, pois só uma barreira de preconceito explicaria a composição atual. Existe uma norma em curso, e ela é firme e não declarada. Diferentemente da África do Sul ou do sul dos Estados Unidos, o Brasil sempre teve pudor em confessar, juridicamente, seus preconceitos. Sempre preferimos a prática discreta ao descaramento da lei de apartheid.

Volto à promessa do presidente: “Um ministro terrivelmente evangélico”. O STF nunca poderá, com 11 membros, contemplar todos os grupos. Como eu já falei durante um debate, sempre haverá um grupo excluído. Se houvesse mais ministros/ministras negras/negros, continuariam faltando indígenas e orientais. Conheci um juiz cego em um congresso. Quando ele chegaria ao Supremo? E um ministro cadeirante, uma ministra lésbica, um ministro islâmico ou uma ministra também mãe de santo? Qualquer composição excluirá muita gente. Temos de nos fixar em alguns parâmetros: mesmo não podendo representar todos, por que representar sempre os mesmos?

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Os evangélicos pentecostais e neopentecostais cresceram muito no Brasil. Têm participação midiática expressiva, apresentam bancada política organizada e ocupam muitas posições na República. Eles são parte fundamental da sociedade brasileira com seu trabalho e seu peso demográfico crescente. Nada mais justo que, em existindo oportunidade, possam ocupar a Presidência da República ou um lugar no STF. Como já foi dito, não há cotas para isso, apenas uma vontade de maior diversidade representativa. De novo, e pelo mesmo caminho, não deveria ser indicado “por ser” de um credo específico em uma República laica, porém nada feriria a ética se o presidente indicasse um evangélico de notável saber jurídico. Aquilo que negros, mulheres, gays e evangélicos sempre precisariam declarar é que sobem ao posto do STF para defender a Constituição, cuja base é a igualdade de todos perante a lei. Mesmo tendo convicções religiosas profundas, um ministro “terrivelmente evangélico” deve pensar que sua função é defender a Lei Maior e não o livro do Gênesis. O drama iniciado quando Deus é colocado acima de tudo é que o tribunal vai ter de decidir qual Deus é o único verdadeiro para se sobrepor aos outros. O Brasil tem muitos deuses e muitas crenças. Quando não acreditamos nisso, corremos o risco de ignorar que fé é algo de foro íntimo e que Direito Constitucional pertence a todos. Religião oficial sempre resulta em intolerância e até fogueiras. Isso já ocorreu e não é bom nem para religiosos. Anseio por um ministro “terrivelmente” apaixonado pela Constituição vigente. Boa semana para todos.

Leandro Karnal é articulista da Agência Estado.