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Almoço de Domingo

05 de Setembro de 2020 às 00:01

Almoço de Domingo Crédito da foto: Reprodução / Internet

Edgard Steffen

Tua esposa será como videira frutífera em tua casa;

teus filhos serão como brotos de oliveira

ao redor de tua mesa. (Salmo 128:3)

Gente de minha idade vive a repetir assuntos. Talvez por falta de opção. Se tem força para deslocamentos, usa-a para visitar médicos ou deambular pelas farmácias. Aventura maior é perambular por algum shopping devidamente escoltado(a) por alguém. A rotina da aposentadoria gera dias iguais e a sensação de que o tempo voa. Fora disso só lhes restam lembranças de passagens selecionadas pela vaidade ou autocrítica. Repete-as ad nauseam aos familiais.

Não me aperreia falar sobre o passado, em lugar de abordar o presente ou tentar adivinhar o futuro. Minhas reminiscências não devem ser interpretadas como “saudades dos bons tempos”. São pura falta de assunto. A saudável obrigação de preencher este espaço, pode levar-me à repetição. Se for o caso desta, espero ser perdoado.

Cansei de ouvir dizerem, comida boa era aquele frango ou macarrão feito em casa. Ambos preparados numa panela de ferro sobre fogão a lenha. Difícil achar bons e confortáveis dias sem geladeira, eletrodomésticos, supermercados abertos e produtos industrializados... e pouca grana.

Domingo era dia de todo mundo em casa. Às 6 horas, meu pai buscava lenha que rachara na tarde anterior para alimentar o fogão. Sobre a chapa, chaleira de ferro para o café e grande caldeirão de alumínio para água a ser usada na depenação do bípede. (O plumoso, não o implume para não deixar dúvidas ou gozações). Lá pelas seis e meia, à medida que a água borbulhante passava pelo coador de pano com pó de café -- torrado e moído em casa -- inebriante aroma enchia o ambiente. Era o sinal de vida saborosa.

Captada no galinheiro a ave, sacrificada com rápida torção no pescoço, estrebuchava no chão de cimento antes de ser pendurada para que o sangue descesse à cabeça.

Começava aí a participação de minha mãe. A água quente tornava mais fácil a depenação e as plumas menores eram queimadas pelas chamas do fogão. Seguia-se evisceração, separação do fígado, moela e coração para a farofa do recheio. A carcaça colocada em vinha d’alhos.

O passo seguinte era preparação do macarrão. A bola de massa de farinha de trigo, amarelada pelas gemas, era sovada sobre mesa de mármore. Coberta com pano para a fermentação, depois estendida com o cilindro de madeira, até formar larga folha de espessura e elasticidade adequadas. Recortada em tiras finas, postas a secar para virarem talharim caseiro.

A ave, devidamente marinada, ia inteira para o caldeirão; seria a base do caldo de sopa. Retirada do caldo seria retemperada e recheada com a farofa de farinha de milho, azeitona, miúdos. Levada ao forno para tostar.

O aperitivo e sobremesa ficavam por conta das filhas. Assim como o preparo da grande mesa da sala. Sobre a alva toalha os pratos, talheres e copos ganhavam a companhia de guardanapos de pano devidamente enrolados em suas respectivas argolas identificadoras do comensal.

Entre os participantes, visitas. Raro o domingo sem nenhuma. Parentes, futuros pastores (seminaristas do Seminário Teológico Presbiteriano de Campinas) ou o padre amigo da família. Às vezes, os dois. Em domingos especiais, com maior número de convivas, o cardápio usava assado maior. Quando Adélia foi conhecer minha família, enorme ganso foi o prato do dia.

Pronta a mesa, minha mãe sentava-se à direita da cabeceira da mesa ao lado do marido. Após breve prece de agradecimento ao pão nosso daquele dia, a conversa rolava à solta. Amenidades, eventos da semana, generalidades políticas, cinema...

Minha mãe, pouco falava. Gostava de ver e ouvir seus rebentos reunidos. Até aceitava desafios sobre filho “predileto” ou provocações jocosas de elogio apenas ao que fora comprado. “Mamãe, o pão e a cerveja (ou vinho) estavam uma delícia!”.

Excepcional cozinheira do quotidiano, minha mãe deixou conselho a quem quisesse cozinhar bem. “É preciso namorar a comida.” Por “namorar” entenda-se acompanhar todos os passos do preparo, gostar do trabalho que faz e amar aqueles para os quais o alimento está sendo preparado.

Edgard Steffen é escritor e médico pediatra - E-mail: [email protected]