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A poesia oculta nas cidades

14 de Março de 2020 às 00:01

A poesia oculta nas cidades Crédito da foto: Projeto Memória JCS

Edgard Steffen

A Rua do Chafariz hoje se chama Christiano Steffen

em homenagem a meu pai, cidadão de Indaiatuba (SP)

Sou do tempo em que as cidades tinham um córrego de acesso com o nome Lava-pés e, se houvesse via férrea, um bairro chamado “Doutro Lado”.

Na minha, havia o Córrego do Belchior (que o povo chamava “Brechó”) nome do proprietário da chácara onde nascia o curso d’água. Um trecho era “das Lavadeiras” porque abrigava tanques comunitários onde humildes trabalhadoras lavavam e coravam as roupas captadas nos domicílios. Noutro trecho, “do Matadouro”, a água servia para limpeza das tripas dos animais abatidos. Entre a lavanderia e o matadouro, o riacho virava Lavapés, porque era o acesso à Rua 15 de Novembro, uma das mais importantes por abrigar padarias, lojas e armazéns de secos e molhados. Os moradores da zona rural chegavam descalços e, naquele ponto, lavavam os pés no corgo para calçar sapatos ou botinas. Preservavam um bem durável, obrigatório e caro.

Já o designativo Doutro Lado ligava-se ao fato dos mais afortunados residirem no trecho entre a estação ferroviária e a igreja. Quanto mais próximo da matriz maior a importância da família na constelação sociopolítica da urbe. A população mais pobre construía suas casas no outro lado da ferrovia, onde os terrenos eram mais baratos e lhes era permitido criar animais de sustento (carroceiros) ou de consumo (galinheiros e pocilgas). Sorocaba e seu “Além-Linha” é exceção, porque o “outro lado” aglutinou um bairro com vida própria e bons empregos ligados à Estrada de Ferro Sorocabana. Hoje ostenta a zona norte, responsável por grande fatia do PIB municipal.

As velhas cidades costumavam ter nomes indicativos de sua utilidade: Rua do Comércio, da Matriz, do Matadouro, da Prefeitura, da Cadeia e assim por diante. As mudanças políticas foram colocando nomes que se tornaram comuns a quase todas. Sete de Setembro, D. Pedro II, Duque de Caxias, 15 de Novembro, Marechal Deodoro, Floriano Peixoto, Getúlio Vargas as onipresentes. Nomes de políticos e datas históricas foram substituindo indicações pragmáticas nas pequenas ou grandes cidades.

As homenagens históricas são justíssimas... mas (com perdão da aliteração) tiraram um pouco da poesia contida nas antigas denominações. Substituíram Estrada da Boiada, Ladeira da Memória, Caminho das Tropas, Rua da Bica, das Flores, da Cebola, Beco do Fuxico, do Pito Aceso, Praça da Forca, do Pelourinho, Rua dos Prazeres, Boca do Inferno... etc.

Navegando na internet fico sabendo que o Bairro do Bexiga (Bixiga no linguajar dos imigrantes italianos) da Capital, não veio de epidemia de varíola como eu pensava, mas do proprietário da chácara loteada -- Antônio Bexiga, apelido sobrenome derivado das cicatrizes de varíola que marcavam sua face.

Depoimento de José Rubens Incao à reportagem do Cruzeiro do Sul*, tirou-me a impressão de que “Rua da Penha” reportava-se, não a uma pedra ou igreja de NS da Penha, mas ao local onde viveu De La Peña, escrivão dos tempos de Baltazar Fernandes. Na citada matéria aprendo que Sorocaba, se não a única, é das poucas cidades a homenagear uma escrava cuja história se perdeu. Rua Nhá Quitéria, cidadã centenária.

Continuei procurando nomes curiosos de locais e vias públicas. Poesia e humor em duplo sentido abundam. “Não-me-toques” (RS) e “Pintópolis” (MG) perdem para o distrito de “Entrepelado” (Município de Taquara, RS). Numa pequena cidade do Vale do Ribeira, placa indicava ao viajante que ali funcionava o “Clube dos Velhinhos Psicodélicos”, assim como em algum lugar deste imenso país existe uma “Rua dos Pensamentos Psicodélicos”. Haja LSD! diriam os espectros de Lennon&Harrison. Pra não perder a poesia prefiro a “Rua da Paz do Teu Sorriso” que bem poderia fazer esquina com a “Rua do Amor Perfeito”. Pura poesia.

(*) Reportagem de Daniela Jacinto para o Cruzeiro do Sul-15/8/2011

Sorocaba, março de 2020

Edgard Steffen é médico pediatra e escritor. E-mail: [email protected]