Buscar no Cruzeiro

Buscar

A Namorada da América

18 de Maio de 2019 às 00:01

A Namorada da América Crédito da foto: Vanessa Tenor

Edgard Steffen

Ms. Doris Mary Ann von Kappeloff

(3/4/1924 13/5/2019)

Assim que soube que a velha Sra. Doris Mary Ann von Kappelhoff, 97 anos -- esquecida do mundo e rodeada dos pets que protegia -- faleceu em Carmel Valley (Califórnia, USA), corri para a estante localizar livro escrito pelo grande biógrafo Ruy Castro*. A pena ágil de Ruy confere leveza a seus escritos, torna saboroso cada parágrafo e interessante cada informação prestada. Quem ler “O anjo pornográfico”, “A estrela solitária” e “Chega de saudade” passa a conhecer Nelson Rodrigues, Mané Garrincha e João Gilberto, em seus respectivos tempos e influências, até a intimidade, sem que os pormenores revelados denigram o caráter do biografado. Parênteses. Parece que cometi impropriedade ao citar a “ágil pena”. Se não me falha a memória, Ruy Castro -- avesso a celulares, tablets, redes sociais etc -- costuma usar caderno de notas e caneta esferográfica. Acredito que tenha aposentado a velha máquina de escrever e passado a redigir suas deliciosas crônicas num teclado de PC ou laptop. Quanto ao verbo “denigrir”, tenho dúvidas se é politicamente correto.

Acertei na fonte. No livro “Saudades do século 20” encontro mais informações sobre Doris Day que as garimpadas na imprensa diária. Sem usar do copiar e colar (ctrlc e ctrlv para quem usa informática) busco em Ruy Castro trechos da vida da cantora e atriz desprezada, por parte da mídia de seu tempo, pelo simples fato de encarnar personagens de bom caráter que faziam sexo somente após o casamento. Doris nasceu em Cincinatti (Ohio, USA). Quem a viu dançar e sapatear tem dificuldades em acreditar que esteve perto de condenada à cadeira de rodas pelo resto da vida. Aos 13 anos, o carro em que viajava foi abalroado e destruído por um trem de carga. Verdadeiro milagre ter sobrevivido. As múltiplas fraturas a impediram de movimentar-se por longo tempo; quando passou a se deslocar apoiada em muletas, uma queda jogou-a a mais um ano na imobilidade. Talvez a lady crooner tenha nascido nesse interlúdio. Passava o dia ouvindo o que havia de melhor nas rádios e discos. Ella Fitzgerald, principalmente. Sua mãe contratou professora de canto moradora na vizinhança. Esta ensinou-a cantar e lhe deu o conselho: “Cante como se fosse para uma única pessoa”. Sua voz clara, adocicada, precisa na emissão e divisão da frase musical, acabou por incluí-la no quinteto dos maiores cantores americanos. Os outros eram Bing Crosby, Frank Sinatra, Louis Armstrong e Billie Holiday.

Muito cedo, antes de ser descoberta para os musicais da Warner e MGM, Doris amassou muito barro e neve nas estradas, dormiu em muquifos, em excursões com big-bands pelo interior dos USA.

Talento para o show-bussiness, ela os tinha de sobra. Para escolher maridos, nenhum. Com idade inferior a 17 anos, casou-se com o trombonista Al Jorden, com quem teve o filho Terry. O trombonista aplicava-lhe surras homéricas. Viúva, a cantora casou-se com George Wedler, saxofonista. Este acabou pedindo divórcio por não suportar a possibilidade de ser conhecido apenas como marido de Mrs. Day. Em 1951, milionária estrela de cinema, casou-se com Marty Melcher. Este era espécie de caça-dotes fanático e incompetente. O marido passou a gerir a carreira da esposa. Fanático por uma religião, que impedia seus fiéis de tomarem remédios, morreu por não se tratar. Incompetente, deixou a viúva, sem um centavo e com uma dívida astronômica. Para pagar as contas Doris teve que vender sua casa e apresentar-se em séries de televisão, trabalho que detestava.

Para quem curtiu os discos e filmes da grande estrela do entertainiment, ora desaparecida, a definição: “A única entre dez estrelas de cinema que não precisava usar o sabonete Lever. A definitiva girl next door, cuja efígie loura, sardenta e lindamente dentuça só faltou sair em selos e moedas comemorativos da época. Grandes tempos.”**

(*) Ruy Castro - Saudades do Século 20. Cia. Das Letras, 1994

(**) Idem pag.50

Edgard Steffen é médico pediatra e escreve para o Cruzeiro do Sul -- [email protected]