A morte de George Floyd e sua afronta à dignidade humana

Por

Carmela Marcuzzo do Canto Cavalheiro

A morte do americano negro, George Floyd, causou grande comoção e repúdio nos Estados Unidos e no mundo. A senadora negra, Kamara Harris, ex-promotora da Califórnia e ex-presidente do Partido Democrata denunciou o policial por crime de tortura e relatou: “Floyd was begging to be able to breath” (Floyd estava implorando para conseguir respirar). A filmagem de Floyd sendo torturado causou tamanha repulsa, tendo em vista que a tortura é a conduta humana que mais nega a dignidade.

A dignidade é um atributo intrínseco ao ser humano, só o ser humano é racional e autônomo segundo Immanuel Kant. O elevado grau de abstração da dignidade define, inclusive, que a dignidade humana não deve ser considerada um direito, pois é um atributo inerente ao ser humano. Na medida em que o ser humano é tratado como um objeto, maior se dá a distância com a noção de dignidade. Nesse sentido, há indissociável vinculação entre a dignidade humana como fundamento dos Estados democráticos e os direitos fundamentais. A cena de Floyd sendo torturado transcende a questão racial, de modo a ter levado uma multidão constituída por maioria branca a protestar em várias cidades nos EUA.

É importante analisar o trágico acontecimento com base na perspectiva histórica acerca da reprovabilidade da tortura. Em 1762, Jean-Jacques Rousseau introduziu a expressão “direitos do homem” em um tribunal na cidade de Toulouse, no sul da França. Na ocasião, um protestante francês de 64 anos, chamado Jean Calas, culpado pelo assassinato do seu próprio filho com a motivação de evitar que o mesmo se convertesse ao catolicismo. Os juízes condenaram Jean Calas a morrer amarrado a uma roda. O caso Calas voltou a ser o centro das atenções, quando Voltaire arrecadou dinheiro para sua família, e publicou um panfleto e um livro baseados no caso. O mais famoso foi o “Tratado sobre a tolerância: por ocasião da morte de Jean Calas”, no qual utilizou pela primeira vez a expressão direito humano. Sua primeira conclusão foi a de que a intolerância não poderia ser um direito humano.

Após o extermínio conduzido pelo nazismo durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e a carência de um sistema internacional que pudesse ter evitados tais atrocidades, verificou-se a necessidade de se criar o Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH). O fato de os direitos humanos estarem codificados mediantes tratados internacionais também seria uma forma de se evitar retrocessos com relação ao tema.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi assinada em 10 de dezembro de 1948 e em seu artigo 1º define, “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. A Declaração representa a importância desses direitos serem tratados em caráter universal em decorrência da ineficiência dos ordenamentos jurídicos nacionais em evitarem a disseminação da intolerância.

Nesse contexto, o indiciamento do policial Derek Chauvin por homicídio culposo, após ser flagrado com o joelho sobre o pescoço de Floyd, tem motivado vários dias consecutivos de passeatas em vários cidades estadunidenses. O óbito de Floyd, a pandemia da Covid-19, a crise econômica, a inabilidade do presidente Donald Trump em dialogar com aqueles que protestam demonstram um contexto adverso para as eleições presidenciais de novembro de 2020 e da tentativa de diálogo com as minorias.

Carmela Marcuzzo do Canto Cavalheiro é advogada, professora de Direito Internacional da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) - carmelacavalheiro@unipampa.edu.br