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A Justiça e o Perdão

20 de Outubro de 2019 às 00:01

Dom Julio Endi Akamine

Quando rezamos o Pai-nosso, pedimos a Deus que se comporte conosco como nós nos comportamos com os outros: se não perdoarmos a quem nos ofendeu, pedimos a Deus que também não nos perdoe. Ainda bem que Deus não ouve estas nossas palavras! Vivemos em um tempo que desaprende a perdoar e em que o perdão rareia. Por isso a prática do perdão é tão urgente!

Perdoar as ofensas significa fazer do mal sofrido uma ocasião de graça e de superação de seu veneno. Com efeito, todo mal recebido sempre provoca em nós o desejo de vingança e o ódio. Por sua vez, o perdão arranca de nós tanto o mal quanto a vingança. Nesse sentido, o perdão é uma força real de mudança e de conversão para quem fez o mal.

Perdoar as ofensas não tira nem atenua a responsabilidade de quem cometeu o mal, mas o convida a cair em si e impede que o mal se propague. Perdoar também não tira o que o mal destrói em quem o recebeu, mas precisamente por não se deixar vencer por ele, a pessoa que perdoa faz prevalecer o amor sobre o ódio. Nesse sentido, perdoar não é esquecer. Pelo contrário, só é possível perdoar o que não foi esquecido. Trata-se de curar a memória para não permitir que erva destruidora da vingança lance raízes e cresça no coração.

Ao perdoar as ofensas não se esquece o mal cometido. Recordar o mal é importante para não o repetir. Se, porém, a recordação for entrelaçada de perdão, insere-se no mundo e nas relações pessoais, uma força de reconciliação, uma energia capaz de recompor os tecidos de ligação destruídos pelo mal.

Para perdoar as ofensas não basta simples esforço psicológico. É preciso a ajuda de Deus Misericordioso que sustenta quem sofreu ofensas para recompor os tecidos de relações dilacerados pelo mal. O perdão é o outro lado da moeda do amor e da misericórdia.

Se temos dificuldade de perdoar, recordemos o que diz o Catecismo da Igreja (2843): “Não está em nosso poder não mais sentir e esquecer a ofensa; mas o coração que se entrega ao Espírito Santo transforma a ferida em compaixão e purifica a memória, transformando a ofensa em intercessão”.

Vejam como é sábia a doutrina da Igreja: “Não está em nosso poder não mais sentir e esquecer a ofensa” (2843). Não confundamos “sentir” com “querer”, e não esqueçamos que o autêntico amor está na vontade -- no querer -- e não nos sentimentos. Mesmo tendo dificuldade “emotiva” para limpar o coração do rancor, podemos dar a Deus todo o nosso querer e a nossa vontade de perdoar. Se essa atitude for sincera, já estamos perdoando “setenta vezes sete” (Mt 18,35), porque estamos “entregando” o coração com um ato de nossa vontade ao Espírito Santo, que é o Amor em Pessoa.

Além disso, é preciso se esforçar em transformar a ferida em compaixão. Compaixão não é desprezo (“não sinto raiva, sinto pena desse pobre coitado, que não vale nada”). Compaixão é perceber que toda falta faz mal, sobretudo, a quem a comete. É uma ferida que se faz a si mesmo, e que deve mover-nos a agir como o bom samaritano: ajudar a curá-la (Lc 10,33-35). Como? Esforçando-nos por ser acolhedores, não remexendo na ferida, tendo a iniciativa criativa de praticar pequenos atos de bondade. Perdoar as ofensas é “transformar a ofensa em intercessão” pela pessoa que nos ofendeu. Proponha-se, por exemplo, a fazer o seguinte: “Sempre que me lembrar do que me fez, sempre que pensar nessa pessoa, vou rezar uma Ave-Maria por ela”.

Perdoar as ofensas é um trabalho de memória no sentido de que ajuda a quem foi ofendido a não repetir em relação aos outros o mal que ele mesmo sofreu. No perdão é curada a memória do mal: o ofendido não se torna escravo da recordação, não permanece prisioneiro nas trevas do mal recebido e refém do próprio passado. O perdão sara o ofensor e o ofendido.

Perdoar as ofensas é uma obra necessária e urgente para afrontar as feridas e as dilacerações internas e sociais provocadas pelas guerras, pelos embates políticos e pela criminalidade. Sem o perdão a memória vingativa nunca passará e continuará a envenenar os povos e as gerações futuras.

O perdão das ofensas não é um ato de heroísmo individual. É, antes, um processo que requer a ajuda de Deus e o apoio dos irmãos no sentido de reconstituir o que foi lacerado pela ofensa. O perdão não é esquecimento superficial, mas uma força histórica que reconstrói. Não faz parte do perdão a habituação à ofensa e a tolerância ao mal. Pelo contrário, o perdão é uma barreira à expansão do mal.

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba.