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A hora da retirada

03 de Junho de 2020 às 00:01

A hora da retirada Crédito da foto: Divulgação

Leandro Karnal

Há 80 anos, em junho de 1940, completou-se uma retirada que é tratada como épica pelo Ocidente: Dunquerque. Esse lugar (entre a França e a Bélgica) apresenta um templo católico em meio às areias, de onde deriva o nome: igreja das dunas (dun-kerke).

O maior conflito da história humana teve começo, na Europa, em setembro de 1939. Derrotada a Polônia, as divisões alemãs não pareciam dispostas a bombardear seus inimigos ocidentais. Os meses finais de 1939 e iniciais de 1940 foram de tenebroso silêncio dos canhões a Oeste. O período foi batizado de Guerra de Mentira (em inglês, phoney war; em francês, drôle de guerre). A vida transcorria em Londres, Amsterdã, Bruxelas e Paris como se não existisse um perigo nazista.

Os franceses tinham adotado postura defensiva e confiavam de forma exagerada na sua imensa e custosa Linha Maginot, uma rede de casamatas e concreto, armamentos subterrâneos, depósitos de munições e até hospitais e transporte nas profundezas do solo para enfrentar a guerra que estava na memória dos velhos marechais de Paris: um conflito de trincheiras. Sim, em 1914, a Linha Maginot teria sido poderosa e intransponível. Mas, estávamos em 1940. O novo mundo era de aviões e de tanques decisivos. Os ingleses, protegidos pela sua poderosa marinha, deslocaram tropas para a França. O povo das ilhas não sofria uma invasão desde 1066 e isso pode ter aumentado a confiança de Londres. A confiança na tática defensiva foi exagerada.

Quando a guerra de mentira se tornou de verdade, a rapidez da mudança foi assustadora. A região acidentada e com vegetação densa nas fronteiras da França, Bélgica e Luxemburgo era considerada uma barreira natural. Como na Linha Maginot, o alto-comando francês cometeu o erro de supor que seria impossível para os tanques alemães (Panzer) atravessarem o Rio Mosa e as áreas ao redor. Curiosamente, a floresta antiga parece ter dado sorte duas vezes ao exército alemão: nas vitórias de 1940 e na contraofensiva combatendo o avanço aliado, em 1944.

A tática das divisões de tanques passou a incorporar uma mobilidade inédita e assustadora. Os veículos avançavam muitos quilômetros por dia e passaram com relativa facilidade pelas Ardenas. Bélgica, Holanda, Luxemburgo e a fronteira francesa foram atacadas em poucos dias a partir de dez de maio daquele ano (1940). Um pouco antes, o movimento de avanço já tinha atacado Dinamarca e Noruega. A guerra relâmpago alemã (Blitzkrieg) surpreendeu todos, Hitler inclusive. Líderes de tanques e oficiais tomaram decisões, aparentemente, sem um total controle de Berlim. As divisões francesas e inglesas foram sendo encurraladas em Dunquerque, uma praia aberta e sem defesas naturais. Um soldado francês e brilhante historiador, Marc Bloch, escreveu, depois, a obra A Estranha Derrota (Zahar). Churchill fez uma análise do episódio na sua obra Memórias da Segunda Guerra Mundial (HarperCollins). Os dois autores são excelentes, porém, ambos escreveram após Dunquerque. A distância cronológica ajuda na clareza. Os fatos do momento estão imersos em brumas e sem destino indicado.

Centenas de milhares de soldados apanhados em uma armadilha poderosa. Os ingleses tomaram uma decisão que se revelou sábia: enviar todos os barcos disponíveis (de militares a barcos de pesca e de turismo) para resgatar o máximo de homens do outro lado do Canal. O resultado foi extraordinário: o número de resgatados foi imensamente superior ao esperado. A força aérea alemã poderia ter causado o caos bombardeando a praia e os barcos. Os ataques foram relativamente leves. Por que a Luftwaffe evitou usar seu poderio? Há várias hipóteses, nenhuma inteiramente satisfatória. Outro dado curioso é que o general alemão (Gerd von Rundstedt) não compartilhava da ideia dos colegas oficiais de ataques relâmpago e preferia construir pontos seguros de retaguarda. Sua tática foi derrotada pelo alto-comando germânico. Ele seria promovido a Marechal de Campo logo em seguida. Premiou-se um militar que, se tivesse feito valer sua estratégia, teria impedido ou retardado o rápido avanço sobre Dunquerque.

Na hora em que a expansão nazista parecia irrefreável, despontou ainda mais a liderança de Winston Churchill. Sempre vale a pena ler seus livros e ver o filme O Destino de Uma Nação (Darkest Hour, 2017, direção Joe Wright). Gary Oldman ganhou Oscar pelo desempenho brilhante como primeiro-ministro britânico. Também é forte ver Dunquerque (Dunkirk, 2017, Christopher Nolan). Acompanhe bons filmes e lembre-se de que o objetivo dos roteiristas e do diretor não é preparar alunos para a prova do Enem. Obras cinematográficas são sobre história, jamais históricas em si. O filme mira na narrativa cativante e nos grandes prêmios e o júri de Oscar nunca foi dominado por historiadores. Se houvesse essa reviravolta, o cinema viraria uma boa fonte historiográfica e o público correria das salas. Dizendo de outra forma: todo filme é histórico, pois sempre mostra como um determinado momento construiu a memória do passado. Nenhum filme é “fiel” ao que ocorreu. Os cuidados de verossimilhança dos grandes estúdios servem para conferir maior apelo comercial ao produto. Discutir se um filme é baseado em fatos reais é puro preciosismo. O principal argumento é o mercado e a cabeça dos produtores. Cinema pode ser arte e sempre é parte de uma indústria cultural. É preciso manter a esperança e a lucidez.

Leandro Karnal é historiador e escreve para a Agência Estado.