A falta de abraços
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Edgard Steffen
Honrarás teu pai e tua mãe para que se prolonguem teus dias sobre a terra
(Êxodo 20:12)
Contrariando o octogenário autor do poema “Instantes”¹, eu não gostaria de voltar atrás para cometer mais erros, ver mais amanheceres ou sóis poentes, nem andar descalço desde a primavera até o outono. O letrista de Epitáfio² deseja quase as mesmas coisas porque o “acaso vai protegê-lo”. Chegando perto dos 90, vivenciei acertos e cometi minha quota de erros. Sei que nada devo ao “acaso”. A Divina Providência instrumentou pessoas contribuintes em minha história pessoal, escolhas e objetivos. Os erros ficam por conta de meu próprio arbítrio.
Abraçar e ser abraçado pelos filhos (e netos) talvez seja a carência maior que eu sinto nesta quarentena. Carência ampliada fez brotar dentro em mim saudades de Christiano, meu pai. Não que ele vivesse me abraçando. Nasci e cresci num tempo em que contato físico em excesso era coisa de mulher ou efeminados. Abraços eram destinados a ocasiões especiais (aniversários, natais, formaturas, etc). O amor paterno era expresso na presença em família estruturada, hierarquizada e estável.
Amigos eram conquistas. A cada um a incumbência de fazê-los. Dos versos Pai, pode ser que daqui a algum tempo / Haja tempo pra gente ser mais, / Muito mais que dois grandes amigos / Pai e filho talvez³ eu suprimo o “talvez”. Christiano Steffen não era amigo a ser conquistado. Era muito mais que isso. Era meu pai. Ensinou-me caminhos a percorrer e objetivos a cumprir.
Não foi por amizade que perdoou minhas faltas. Nem tentou corrigi-las com castigos. Em curtas e incisivas palavras mostrava-me o descaminho.
Não era meu amigo, mas deu-me segurança. Para os 11 filhos era a certeza de que podíamos dormir tranquilos porque nenhum malfeitor ousaria entrar em nossa casa. Além do porte físico longilíneo atlético, possuía um Smith-Wesson niquelado e cabo de madrepérola guardado no criado-mudo.
Não era meu amigo. Mas ensinou-me a apreciar os encantos da natureza. Caçar e pescar somente o que se podia comer. Temer águas traiçoeiras. Identificar árvores e animais do campo. Interpretar nuvens para adivinhar se iria chover.
Não era meu amigo, mas levava-me à igreja. À Escola Dominical e ao culto noturno. Ecumênico, além da comunidade evangélica, tinha amigos sacerdotes católicos. Na escola leiga, não exigia fôssemos os primeiros da classe, mas não admitia fôssemos os últimos. Com os funcionários e professores, cortesia e respeito.
Não era meu amigo. Mas ensinou-me que a vida não é limitada somente ao trabalho e estudo. Ensinou-me a gostar de futebol (e torcer sem brigas ou palavrões). Responsável pela fiscalização dos espetáculos circenses, sem negligenciar leis e posturas municipais, repassava-me ingressos de cortesia.
Não era meu amigo. Na relação pai/filho usava a didática do exemplo. Cumpria rigorosamente os horários de trabalho, não faltava ao serviço. Não aceitava desperdícios de água ou eletricidade, por serem bens públicos e não comodidades individuais. Preferível pagar impostos que ser isento por não ganhar o suficiente.
Se puserem minhas saudades na conta do Dia dos Pais, respondo que não acredito na data. Enquanto o Dia das Mães nasceu no coração de uma igreja pela fé e saudades de Anna Jarvis, o dos Pais surgiu no calendário do mundo dos negócios. Enquanto o primeiro, como efeito colateral gerou incremento nas vendas, o segundo incrementou o comércio de bens e serviços para depois gerar manifestações de afeto. Experimentem clicar “Dia dos Pais” na internet e vejam a multidão de belas e inspiradas mensagens.
No Decálogo, o 5º mandamento é bem claro: “Honrarás teu pai e tua mãe, para que se multipliquem teus dias sobre a terra.” O Dia dos Pais bem que poderia ter nascido numa comunidade cristã.
Para encerrar, recomendo. Filhos(as) mais avançados na idade, reflitam na pergunta de Neruda: “Onde está o menino que eu fui,/ segue dentro de mim ou se foi?”4
(1) Poema de Nadine Stair, erroneamente atribuído a Jorge Luís Borges.
(2) Epitáfio -- Sucesso dos Titãs
(3) Pai Herói, de Fábio Júnior
(4) Pablo Neruda -- O livro das perguntas
Dia dos Pais 2020
Edgard Steffen é escritor e médico pediatra. E-mail: [email protected]