A dor mais funda

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Crédito da foto: Ina Fassbender / AFP

Crédito da foto: Ina Fassbender / AFP

Leandro Karnal

Há dois sentimentos feios que envergonham o portador. Um é a inveja; o outro, o ressentimento. A inveja, já disse muitas vezes, é a tristeza pela alegria alheia. Não pode ser confundida com a simples cobiça. O invejoso não deseja o que o outro tem, apenas se contorce internamente ao ver que o prazer alheio é intenso. Não existe inveja positiva, ela é sempre um fracasso.

O ressentimento é parente próximo da inveja. Ambos parecem inconfessáveis. Em um patamar inicial, é a mágoa guardada e macerada em vinagres internos. O ressentido não supera a fala, o gesto ou a dor. Guarda-a com certo zelo.

Buscando raízes em Nietzsche, Maria Rita Kehl (“Ressentimento, casa do Psicólogo”) diz que pode existir um cultivo da dor ressentida que encontra no Outro uma forma de dialogar com seu narciso abalado. Culpa-se o vencedor em algum campo e eu, atingido de forma direta ou indireta, viro um derrotado-vítima. Não pode ser confundido, prossegue a autora, com qualquer mágoa ou raiva. Eu poderia imaginar, fugindo do rigor técnico, que tristeza é diferente de depressão. A tristeza tem causa e duração. A depressão é mais longa e nem sempre parte de um gatilho concreto. O ressentido é o depressivo. Porém, se a depressão é doença e dolorosa, o ressentido cultiva com certo prazer a injustiça que o coloca no patamar da vitimização.

Ressentidos são ambidestros. O de esquerda entende que todo sucesso material foi obtido à custa do seu próprio. Seu apartamento de 200 m2 só pode existir porque oito famílias estão confinadas em moradias de 25 m2. É uma leitura mercantilista de riqueza: o montante de tudo é fixo e, para um alguém ter muito, outros precisam ter menos. Existem injustiças sociais? Com certeza.

Poderíamos trabalhar por uma sociedade que contivesse menos disparidades e que todos tivessem mais acesso ao essencial? Absolutamente válido. O ressentido de esquerda não faz sempre o caminho da equidade, faz o da dor que costura inveja com a ferida narcísica que tira seu sono. Incomoda mais que o outro tenha do que ele não tenha. Suspeita que pode ser sua incompetência e deseja substituir o controle de um grupo explorador pelo seu. Com frequência o ânimo revolucionário de esquerda gera tiranos despóticos porque estava embasado na dor do poder e riqueza alheios. Stálin teve mais poder e matou mais gente do que o czar que ele odiava. Sempre reafirmando: justiça social não pode ser calcada em ressentimento.

Falei que ressentimento tinha dois vetores. O de direita é muito comum. Acusa a esquerda de dominar a cultura sem nunca ter tentado, vagamente, utilizar o caminho de livros, shows ou do teatro. Atribui ao financiamento público a existência de bolhas culturais esquerdizantes e jamais elabora uma cultura forte e alternativa aos discursos que imagina dominantes. Apesar das evidências fortes, óbvias e abundantes da corrupção entre empresários e políticos conservadores, identifica apenas no outro, na alteridade da esquerda, todo o mal. Separa-se habitualmente da esposa por mulheres cada vez mais novas e berra pelos valores familiares que estariam em perigo graças ao comunismo. Na base histórica, o ressentido conservador é o velho fariseu do Evangelho: aparência de virtude e uma vontade imensa de controlar o outro pela teatralidade da sua benevolência positiva.

Volto a dizer: existe uma boa luta pela justiça social e ser conservador é uma posição política e pessoal válida. Esquerda e direita não são ilegais nem contrárias à ética. A democracia ganha com a diversidade. Estou falando do ressentimento universal. Um dos dois parágrafos anteriores fez com que você se irritasse? Temos um bom ponto de partida para o tema do meu texto. O que me perturba me revela.

Houve um aumento do ressentimento? Aparentemente sim. Redes sociais talvez tenham trazido uma propaganda de sucesso e felicidade que envenenam o ressentido. Maria Rita Kehl fala de um “apego ao dano” e eu imagino que ele possa ser reforçado navegando pela vida fabulosa dos outros. Também existe a crença nova de que a felicidade absoluta é o destino de todos nós e um direito adquirido pelo simples fato de eu existir. O fato de existir gente mais bonita, mais inteligente, mais focada, mais eficaz, com famílias melhores, carros mais luxuosos provoca o ressentido. Tudo foi tirado dele. A argila da inveja se compacta com o ácido do ressentimento e a casa da dor vai sendo erigida a cada novo clique. É, como foi dito, uma morada dolorida, todavia confortável. Exclui minha responsabilidade e invoca a clássica má-fé sartreana: não fui eu, foi o outro, a culpa é alheia, eu fui forçado, o outro é livre.

O ressentimento é universal e algo muito importante para ser analisado. Tem uma estética e uma tradição literária. Entre outros, Maria Rita Kehl lembra da peça “Ricardo III” (Shakespeare) e de “São Bernardo” (Graciliano Ramos). Na primeira, um ressentido consciente age para se vingar do mundo. Na segunda, é a mulher alvo do ressentimento, Madalena, que toma a iniciativa de uma vingança. Apesar de forte na literatura, a política é o campo por excelência do ressentimento. Bons candidatos sempre souberam explorar o ressentimento do eleitor. O paternalismo político, marca da nossa história de cinco séculos, é a chave disso. “O ressentimento é o terreno dos afetos reativos, da vingança imaginária e adiada, da memória que só serve à manutenção de uma queixa repetitiva e estéril”, como encerra Maria Rita Kehl. A impotência crônica do ressentido é uma dor funda cáustica que ataca o fundamento democrático. É preciso ter esperança, muita, e lutar contra nossos ressentimentos.

Leandro Karnal é historiador e articulista da Agência Estado.