A casa da rua 15

Por

Crédito da foto: Luiz Setti / Arquivo JCS (6/9/2013)

Crédito da foto: Luiz Setti / Arquivo JCS (6/9/2013)

Edgard Steffen

Reminiscências de Ayrton Reinaldo Steffen

*1936 +2010 (Ex-diretor do Padilha)

Em 1943, aos sete anos de idade, fui morar com meus avós em Indaiatuba. Primeiro neto de Cristiano e Augusta, rodeado e paparicado por minhas tias, estava no paraíso. A casa ficava na rua Quinze de Novembro onde funcionava a agência do Correio, sendo minha tia Júlia a agente postal.

Estreita e comprida, era construída em parede e meia com outra idêntica, onde funcionava a farmácia São José do sr. Tabajara Cordeiro, pai do meu colega de infância e, hoje, médico Dr. Renato Antônio Cordeiro.

A agência do Correio, separada da sala de visitas por um tapume de madeira pintado de verde-escuro, tinha um balcão e atrás dele uma mesa. Na parede dos fundos havia uma estante tendo em cima uma prateleira dividida em escaninhos. Naquele tempo não havia carteiro e as pessoas iam buscar correspondência no Correio. Cartas, revistas, jornais chegavam pela mala postal e eram classificadas pela ordem alfabética do nome dos destinatários e colocadas no escaninho de letra correspondente onde ficavam até serem procurados; muitos, por morarem mais distante ou na zona rural, só passavam para pegar a correspondência uma vez por semana.

Para mim, aluno de D. Áurea, no primeiro ano do curso primário no velho Randolfo (então Grupo Escolar) empenhado em aprender a ler, a presença em casa, ou melhor no Correio, daquela quantidade imensa de jornais e revistas me deixava encantado e eu folheava fascinado tudo aquilo tentando juntar as letras e entender o que estava escrito. Desde então o meu gosto pela leitura tomou corpo e tornou-se mais que um hábito, quase um vício.

Levei muita bronca de minha avó por demorar em voltar quando ela me mandava ao armazém comprar alguma coisa que ela precisava para cozinhar, é que eu no caminho se encontrasse um papel com quaisquer letras, eu o apanhava e ia andando em passos lentos tentando traduzir o escrito.

Imagens, sons e cheiros ainda permanecem em minhas lembranças, daquela época. Lembro-me da revista Em Guarda, ilustrada com fotos da guerra, lembro-me das fotos dos campos de concentração com pilhas de cadáveres e com filas de pessoas esquálidas (pele e osso) vítimas dos nazistas, lembro-me do som do rádio do vizinho Tabajara apresentando a radionovela sob patrocínio da Coty todas as tardes, ainda ouço o som do carimbar das cartas rápido energicamente batido por tia Júlia, um som sincopado, uma batida surda na almofada de tinta e outra seca no selo da carta. Cheiro característico que periodicamente sentíamos quando tia Júlia, no fogão de lenha, derretia placas de goma arábica para fazer a cola utilizada na correspondência. Os quartos das tias, recendendo perfume e cremes e ainda lembro do cheiro de terra molhada nas manhãs, quando as tias varriam a casa, que por ter o piso de tijolos era aspergido com água pra não levantar poeira.

Na lateral da casa havia um corredor que ia da rua até o quintal, no final desse corredor, do lado direito que antigamente era usado para guardar arreio e que servia de despejo, num canto havia um velho mancebo onde ficava dependurado um poncho do meu avô, que o usava nos dias de chuva. Um dia eu teria que ir ao dentista, que era o Dr. Adib Pedro, coisa que eu detestava, principalmente quando tinha que obturar um dente. Certa vez, apavorado com a consulta marcada, logo após o almoço esgueirei-me até o tal quartinho e escondi-me atrás do velho poncho e ali fiquei até a hora do jantar, podia ouvir a família inteira me procurando desesperada. Mas o medo da broca e do enorme dedão do doutor Adib foi maior do que merecida bronca que levei.

Naquele tempo de vacas magras a ordem era aproveitar tudo, as cascas das frutas eram usadas por minha avó para fazer deliciosas geleias que serviam para cobrir os “waffles” que eram feitos no fogão de lenha. A forma de ferro fundido produzia, a cada vez, quatro waffles em forma de coração com furadinhos para reter a geleia. No tempo de amoras lá ia eu ao fundo do quintal colher as frutinhas para a geleia.

Nota: Texto encontrado em meus guardados. Publico em memória ao 83º ano de seu nascimento (28/9/1936)

Edgard Steffen é médico pediatra e escritor. E-mail: edgard.steffen@gmail.com