A cartola altiva do gênio

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Crédito da foto: Wikimedia

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Leandro Karnal

No fim do ano passado, comentei que começamos o ano de Beethoven. Ao longo de 2020, o mundo musical lembra os 250 anos do nascimento do gênio da música. Recomendei filmes e leituras na ocasião e queria enfatizar o imenso prazer da leitura da obra editada pela Contexto: “Beethoven, as muitas faces de um gênio”, que reúne o texto atual do maestro João Mauricio Galindo e o texto mais antigo de Romain Rolland.

Para entender a mudança de consciência e de recepção entre os séculos 18 e 19, vou relembrar um conhecido episódio da vida do músico. Beethoven aproximara-se do poeta Goethe. Os dois se admiravam, porém, divergiam sobre muitos pontos. Goethe era um homem cordato e polido, fiel a muitas tradições. Beethoven sempre cultivou maior desalinho na apresentação, rebeldia na fala e certa dificuldade com a virtude da polidez social. Era de um gênio “incontrolável”, escreveu Goethe.

Nossos dois distintos criadores andavam em conversas em Teplitz (hoje a estação de banhos de Teplice, República Checa). Beethoven estava às voltas com a monumental 7ª Sinfonia. Eis que, ao longe, aproxima-se o cortejo com parte da família real austríaca. Ao ver o poder ambulante no horizonte, o autor de Fausto se inclinou respeitosamente, retirou o chapéu, e ficou curvado para que as cesáreas figuras passassem. E nosso músico? Não apenas não se inclinou, como, dizem, manteve o chapéu na cabeça e caminhou de forma acintosa, ignorando áulicos ultrajados. O filho de Bonn pediu a Goethe que fizesse o mesmo; o escritor recusou. O “incidente de Teplitz” foi pintado por Carl Rohling, por volta de 1887.

O episódio revela muitas coisas. A primeira é o fim da era dos músicos-empregados típicos do Antigo Regime. Beethoven e os românticos que vieram viveriam ainda ligados a grandes mecenas ocasionais, mas o mercado consumidor de partituras era uma realidade. Concertos pagos fora de palácios e música impressa poderiam sustentar um criador sem que ele precisasse passar a vida agradando a um rei ou a um bispo. Sim, houve condes e condessas enchendo a bolsa do compositor, porém Beethoven era infinitamente mais autônomo do que fora Mozart ou Haydn.

Há mais na história pintada, como é comum. Não é mais o músico que se curva a cabeças coroadas, todavia a corte que passa a venerar gênios. Com traços distintos, será o que vai marcar a relação entre o rei da Baviera e Wagner. O gênio é único, especial, alguém que causa comoção ao entrar em festas. O nobre é um acidente de nascimento. Em 250 anos o mundo teria esquecido o obscuro conde ou a esquálida duquesa e ainda celebraria Ludwig van Beethoven. Talvez nosso amado músico tenha sido um dos primeiros a perceber que ele estaria tocando a eternidade e as pompas do mundo passariam como um cortejo breve de vaidade rasa e interesses mesquinhos.

Com Goethe morre um mundo de corte, do tipo de sociedade analisada pelo grande Norbert Elias. A sociedade da forma, da etiqueta, do direito de nascimento e do sangue azul. Goethe é um cisne genial que canta tais valores e o peso da tradição. Beethoven indica o que vem pela frente. A partir de Beethoven flui um curso d’água que crescerá. Lá na frente surgirá outra gramática. Liszt joga um cigarro ao chão na rua e uma fã avança, recolhe e engasta em metal precioso para fazer um colar-relicário com o toco fumado que teve a glória de tocar na boca do pianista. Liszt exibe seus dedos longuíssimos sobre o teclado e a plateia delira. Um balançar de seus cabelos compridos leva algumas damas ao desmaio, misto de admiração no espartilho apertado. A Lisztmania flui na planície romântica das grandes cidades como um rio de nascentes no alto, muito ao alto, na montanha beethoviana.

A força da veneração aos criadores e artistas continuou. De muitas formas, saiu de controle e o pleonástico fã-fanático nem necessita de gênios de primeira linha, basta algum objeto com um pouco de amparo midiático. O tempo, a peneira da humanidade, vai dividindo com mais vagar.

Beethoven sabia que era um gênio. Seu público, mesmo com percalços, concordava com a opinião. Sua música foi se tornando incontornável no repertório de todas as orquestras. Em março de 1827, uma multidão silenciosa seguiu o cortejo fúnebre do homem que mudara a história da música. Era um gênio com sangue africano, holandês e alemão. O rebelde que não retirara sua cartola diante de reis, o insubmisso que mudou dogmas sobre sonatas e sinfonias, era agora levado ao descanso eterno por milhares de austríacos de todas as categorias sociais com o chapéu na mão. Sua máscara mortuária foi zelosamente moldada no rosto recém-falecido. Querem avaliar o grau da transformação? Mozart teve o corpo jogado em vala comum com um enterro deserto e tomado por violenta tempestade. Era, na prática, um indigente quase esquecido. Segundo uma tradição nunca comprovada, ele teria ouvido o menino Beethoven tocar e profetizou que o mundo ainda ficaria impactado com aquele talento. O mundo mudou e Beethoven é um dos pais da nova era de veneração ao portador da centelha divina. Eis um bom motivo para ler e ouvir Beethoven. Quer crescer? Tente um concerto no vasto cardápio oferecido pela Osesp na Sala São Paulo. Está longe? Acesse o segundo movimento da 7ª Sinfonia (Allegretto) que sai do tom de Lá maior do primeiro para um solene e tocante Lá menor. É um começo. Permita-se ousar, desafie-se e, mesmo não podendo ser um homem como Beethoven, ao menos não se curve a todo poder que cruza o boulevard. Boa semana a todos os homens e mulheres de boa vontade.

Leandro Karnal é historiador e articulista da Agência Estado.