A carteira
Neusa Gatto
Você viu minha carteira? Não, não vi, responde ela. Ele, então, se põe a procurar. Revira os bolsos. Tem certeza que não viu? Repete ele a pergunta. Já disse, não vi, grita ela da cozinha. Mas, eu tava com ela agorinha! Nervoso, começa a vasculhar a casa. No banheiro, procura atrás do vaso, dentro do box, no armário e até no lixo. Nada. Bom, vai ver o Duque catou e levou lá pro quintal, pensa. Esse cachorro é um disfarçado. Com aquela carinha de santo já tinha sumido com seu chinelo. Roído o pé do sofá. Catado comida da mesa. Era só sentir cheiro de frango pra fungar nos pratos. Já via a cena. Sua carteira estraçalhada, o dinheiro rasgado e documentos babados. E fosse falar alguma coisa pra mulher! Ah, era mais fácil ele ir embora do que ela se livrar do cão.
No quintal, Duque dorme estirado no piso. Abre os olhos languidamente e volta a dormir. Simpatia por simpatia, os dois tão ali, iguais, nenhum apreço um pelo outro. Não, o cachorro nada tinha a ver com o sumiço.
Vai ver tá no carro, fala a mulher. Mas, que carro criatura sem nem fui na garagem hoje? Ah, responde ela, é só um palpite. Vai ver caiu do lado do banco.
Tou gagá, então? Peguei nela agorinha na hora do café. Foi voando pro carro? E riu alto. A mulher dá de ombros e espeta: você bebe todo dia no fim do expediente, chega alcoolizado, vai ver o álcool tá afetando seus neurônios e anda esquecido das coisas. Ah sim, agora temos uma cientista na casa, desdenha ele.
Ela continua: você acha que tou falando bobagem? Pois saiba que outro dia vi na internet que o álcool acaba com a memória da pessoa. Os neurônios vão se comunicando cada vez menos entre si e aí.... Que internet, que álcool, que memória, o quê! Esbraveja ele, me poupe de suas teorias. Então, tá, agora, temos uma expert aqui em casa em ciências neurológicas que quer juntar a porcaria de uma carteira perdida com neurônios, cérebro. Ah, faça-me um favor! Se irrita ele.
A mulher silencia e ele fica a pensar. Teria tido uma amnésia alcoólica? Já ouvira falar disso. E, sem que a mulher perceba, sai de fininho pra checar o carro. Vai que... a mulher esteja certa. Tomara que não, porque, se estiver...
No carro, olha, fuça nos bancos, assentos, levanta tapetes, porta luvas... e, se sentindo uma idiota checa até o porta-malas. Mais uma vez, nada. Volta pra dentro de casa quando a mulher começa a guardar as roupas espalhadas pelo quarto. Vê se não tá nessa bagunça aí, berra ele. Bagunça sua, fala ela. Nada é meu aqui porque não deixo nada espalhado pela casa. Meia, cueca, camisa... Sei, sei, sei... diz ele, o que menos preciso agora é de você falando que sou relaxado. De mau humor, a mulher revira tudo e não tem carteira nenhuma ali.
Não saio sem essa carteira, vocifera ele na sala. Olha pro sofá e, então, uma luz surge em seu rosto. Como não pensei nisso antes? De manhã sentei no sofá pra ler o jornal e a dita-cuja deve ter caído aí. E começa nova busca. Nos cantos, almofadas, nos vãos do estofamento.... arrasta o móvel... nem sinal da dita-cuja.
Cansado e irritado, senta numa das poltronas e fica a pensar. Certeza que pegara na carteira, isso sem dúvida. Então, a mulher passa pela sala. Vê sua cara de chateação e não poupa. Sabe? Outro dia vi um artigo que falava dos homens depois dos cinquenta. Ai, lá vem ela, pensa o marido. Quando passa dos cinco ponto zero, continua a mulher, o homem perde um bocado de testosterona, sabe do que tou falando, né?
Santo Papa! Claro que sei, o que não sei o que isso tem a ver com o fato da minha carteira ter sumido. Ela continua: tem estudos que dizem que quando cai a testosterona uma das coisas que o homem começa a perder também, além de.... não funcionar direito na cama, é a memória.
Ora vejam só. Em plena manhã de uma terça feira você decide ser a inteligente da casa. A que sabe tudo. Explica tudo. Entende de tudo. A mulher se revolta. A inteligente da casa? Pelo que sei o inteligente da casa é sempre você. Ninguém sabe mais que você. Lê mais que você. Só você tá certo e é um baita de um mal-educado. Notou como você fala comigo? É sempre onde tá isso. Onde tá aquilo. Cadê minha camisa? Fora os adjetivos. Larga de ser burra. Tá uma balofa nessa roupa. Sua feiúra não tem remédio e por aí vai.
Cansei. Viu o jeito que você falou comigo durante todo esse tempo que tá procurando a droga dessa carteira? Aqui em casa você não é chefia não! Vai mandar lá nos coitados dos seus funcionários da oficina.
Espantado com a atitude da mulher o homem se assusta. Calma, diz ele. Calma nada, arremata ela. Você não sabe ouvir. Não sabe conversar. É um tosco. Ora, tenta apaziguar ele, esse é meu jeito desde que casamos. Não sei porque tanta reclamação agora. E você ouve alguém? Continua ela. Quantas vezes quis falar com você sobre esse seu jeito e, você ou tá cansado, tá com problemas no trabalho, não tá com cabeça. Ignora sempre. E quer saber? Cansei, arremata ela. Vamos dar um tempo e...
Um tempo? Ah, ah, ah, ri gostosamente ele. Só faltava essa, falar em separação a essa hora da manhã. Tá vendo? Continua ela, como você é arrogante e prepotente? Faça o que você quiser, diz ele, quer ir embora? Que vá, arremata. Ir embora? A mulher ri gostosamente. Se alguém vai ter que ir embora aqui vai ser você. Ele bufa, se levanta da poltrona, vai pra cozinha e berra de lá: Ainda tem cerveja? Vou saber, responde ela, não bebo cerveja muito menos a essa hora da manhã.
Ele suspira fundo, revira os olhos em sinal de impaciência, abre a geladeira, cata lá a última latinha. E, quando já fechava a porta, nota alguma coisa diferente ao lado da bandeja de frios. Sim, aquele objeto é sua carteira. Incrédulo fixa os olhos. Não há dúvida. Como? Matuta, matuta e então, lembra. Na hora do café da manhã, tava com a carteira na mão, quando abre a geladeira pra pegar a manteiga e a geleia. Então, com uma das mãos ocupada deixa a dita-cuja ali pra levar as coisas pra mesa. E lá fica ela numa das prateleiras do refrigerador. Silenciosamente, pega a carteira gelada, enfia no bolso e vai saindo pro trabalho. Na porta, ainda ouve a mulher dizer: Vê se não chega bêbado pra terminarmos a conversa sobre a gente.
Neusa Gatto é jornalista, produtora de TV e conteúdo.