Sorocaba, Além Ponte: Um Olhar Afetuoso Sobre a Herança Espanhola

Por Cruzeiro do Sul

Foto colorizada digitalmente mostra o início da Av. Nogueira Padilha esquina com a av. São Paulo. Nota-se calçamento em paralelepípedos e trilhos de bonde. Data e autor: desconhecidos, talvez nos anos 50

Nasci no Além Ponte, um bairro habitado, em sua esmagadora maioria, por espanhóis e seus descendentes. Eles fugiram da miséria que corroía a terra natal, vindo para o Brasil nos fins do século XIX e início do século XX. Um grupo expressivo deles se radicou em Sorocaba, e com meus avós não foi diferente. Depois de trabalharem em fazendas cafeeiras, eles vieram para a cidade, pois sabiam que ali tinha se formado uma grande colônia espanhola. Os pais vieram trabalhar na lavoura, e os filhos, nas fábricas de tecidos. Lá, entrelaçavam os fios, ganhavam o pão e sonhavam com uma vida mais digna.

O bairro foi crescendo, e muitas ruas surgiram naquele lugar tão pitoresco: Madri, Catalunha, Granada, Sevilha, Cervantes.... Foi nesse cenário que passei quase toda a minha vida, mais precisamente na rua Nogueira Padilha, onde meus avós sempre moraram. Era comum eu chegar à casa deles e encontrar meu avô com os amigos conversando em espanhol. Lá se discutia de tudo, desde política (“Se hay gobierno, soy contra”) até os jogos do São Bento (“Arriba San Biento”).

Minha memória afetiva me faz lembrar do chouriço fresquinho que Dona Maria Chouriceira fazia, da carrocinha que pegava os cãezinhos de rua e dos cortejos silenciosos que passavam com as pessoas a pé, atrás do caixão. Sinto o cheiro de sopa que tomava conta da rua às 18h, das réstias de cebola penduradas na cozinha, das tortillas de patatas e o mantecado feitos pela avó. Observo o Gênio Louco, um bêbado que falava sozinho e andava com seu cãozinho Piloto, sem fazer mal a ninguém. Reza a lenda que ele era tão lindo quando criança que tentaram roubá-lo da mãe e que se tornou um ébrio porque a mulher o abandonou. Pobre infeliz!

Fito o céu salpicado de balões nas noites de junho. Sento-me nas cadeiras da calçada para a tradicional conversa com os vizinhos. Ouço ainda: “Mira”, “madre mia de mi alma”, “tu leche” e tantas outras expressões. E numa rádio qualquer toca:

Te llaman Rodriguez

Por parte de padre

Te llaman Fernandez

Por parte de madre,

Tu nombre es Maria

Maria del Cármen

Maria del Cármen

Rodriguez Fernandez

Olé

A saudade daqueles tempos é muito grande....

Hoje, quase tudo mudou, mas ainda se tenta perpetuar a história de um povo que tanto ajudou na construção desta cidade. O bairro mantém o Zoológico Quinzinho de Barros, nome dado em homenagem ao Capitão Joaquim Eugênio Monteiro de Barros, que ajudou muito a comunidade. Há também o Estádio Humberto Reale, que foi palco de grandes jogos. A antiga casa do Padre Luís Castanho de Almeida hoje sedia o Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Sorocaba. O Parque dos Espanhóis e o cortejo de dançarinas vestidas a caráter se apresentam ao som de músicas espanholas e desfilam pelas ruas da Vila Hortência uma vez ao ano, lembrando as feiras de Sevilha. O Cine Eldorado, abandonado, abriga apenas lembranças de tempos felizes.

Hoje, são os descendentes dessas pessoas guerreiras, que vieram nos porões de navios, fugindo da fome e da pobreza, que procuram manter o legado. Aquela gente humilde, honesta e trabalhadora me ensinou o amor à terra e às tradições. O que aprendi na infância me marcou para sempre e com certeza faz parte do que sou hoje.

A todos os espanhóis e tantas outras etnias que formam esta cidade e este país, minha profunda admiração.

Íria de Fátima Flório é sócia efetiva da Academia Sorocabana de Letras e do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Sorocaba