Minissérie da Netflix: ‘Corpo em chamas’ (parte 10 de 10)
Caro leitor, finalmente chegamos à última parte desta série de artigos. O leitor provavelmente considerará exagerada tanta atenção dispensada a uma minissérie da Netflix e, de fato, devo concordar com ele. Mas, eu poderia debitar a extensão do texto por observar, na minissérie, tantos aspectos interessantes da enigmática natureza humana. Só me resta esperar que os leitores compreendam tanto entusiasmo de minha parte.
A Justiça
A série discute também a Justiça.
A inspetora Ester Varona conclui sua investigação acusando Rosa e Albert pelo assassinato de Pedro. Mas ela não se sente segura de sua conclusão. Por isso responde a um policial que lhe diz que ela sabe tudo do caso: “Menos o que aconteceu”. Mais adiante com a sentença já promulgada de 25 anosa de prisão para Rosa e 20 anos para Albert, o mesmo policial parabeniza a inspetora e ela responde: “Não consigo comemorar algo assim. (...) Só acho que há nuances”. Mais tarde dirá que “É difícil saber as intenções de uma pessoa”.
Estas palavras de Ester estão em desacordo com o que diz o juiz no tribunal, que está convencido de que a missão da Justiça é a de resgatar a verdade dos fatos. Penso que Ester é quem tem razão.
Quando as pessoas se dirigem à sala do tribunal que julgará Rosa e Albert, uma peça musical tocada ao órgão lembra uma obra sacra. O próprio tribunal parece uma igreja e o símbolo da Justiça parece um crucifixo. É uma ironia da infalibilidade da Justiça. O policial que acompanha Ester ao tribunal, mais realista, diz a Varona: “Vai começar o show”. Provavelmente, ele está se referindo à recepção indignada do público a Rosa, mas se aplica muito bem ao próprio julgamento de Rosa e Albert e à própria Justiça.
Música do filme
A maior parte das canções executadas na série está relacionada com os acontecimentos e sentimentos vividos pelos personagens. Embora a trilha musical do filme seja ótima, não será analisada aqui.
Apenas farei breve referência a duas passagens do filme. Uma quando Rosa, dirigindo um automóvel, cantarola, junto com a filha Sofia, a canção ‘Mala mujer’ (‘mulher má’) com um texto que se aplica à relação dela com seus amantes: “Suas unhas de gel deixaram cicatrizes por todo o meu corpo (...) E agora estou desesperado”.
A outra passagem é a que encerra o episódio 5 da série, que tem por título “Amor” e é cantada pela atriz e cantora espanhola Massiel. A letra é longa e apenas me referirei a dois momentos. A canção começa por exaltar o amor como força construtiva, positiva, ilusória, em uma tessitura vocal mais grave e de menor intensidade: “O amor é um raio de luz indireta, uma gota de paz, uma fé que desperta, um perfil, uma sombra, uma pausa, uma espera”; e termina tratando seu lado destruidor, com tessitura mais aguda e maior intensidade: “E o amor desfaz tuas grandes ideias, te destroça, te quebra, te parte, te fere e te faz ser aquele que tu não querias e te empurra para ser mau e te deixa feito merda, e te joga de cara no último inferno, arrancando tua alma, pisoteando teu corpo. E tu te afogas de ansiedade de voltar ao nada. E de repente, ele para, te vê e tem pena de ti.”.
Penso que essa canção seja um bom retrato da universal instabilidade e da mutabilidade do amor e de como ele é vivido na série pelos personagens.
Obs.: esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec.