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Celso Ming

O Natal e a mentalidade ocidental

O Natal deve ser visto (...) como fenômeno que impregna corações e mentes, até mesmo neste nosso tempo, marcado pelo materialismo

23 de Dezembro de 2023 às 22:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

 

Se nos ativermos à chamada mentalidade ocidental, as representações que os humanos fazem das coisas começaram lá atrás com a luta entre gigantes, ou gigantomaquia, tal como representada no altar do templo de Zeus na antiga Pérgamo, hoje oeste da Turquia. Depois vieram as diatribes dos heróis, como nos contam as obras de Homero. Pouco a pouco, emerge da representação das coisas a vida dos mortais comuns.

Na antiguidade, o entendimento era o de que os deuses conviviam em concórdia com os humanos, como nas bodas de Cadmo e Harmonia. Depois veio a ruptura entre os habitantes do Olimpo e os da terra, só tentativamente remediada por meio do sacrifício.

A novidade na grande guinada da mentalidade dos ocidentais foi o aparecimento de Jesus. Era o “Verbo que se fez carne”, tal como consta no prólogo do Evangelho de João. Foi a partir daí que muita coisa mudou.

O conceito da Encarnação, ou o de Deus que se fez gente, não como todo-poderoso senhor dos exércitos, mas como pessoa comum, passou a dominar o pensamento e a vida do Ocidente, a despeito dos avanços e recuos, das traições, das transgressões e de tudo o mais. Antes, pessoas comuns não contavam. Depois, até mesmo escravos e desclassificados passaram a ter valor. É como argumenta o “prussiano de fé judaica” Erich Auerbach, autor de “Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental”, editada em português pela Perspectiva.

A divindade de Cristo não foi conceito unânime entre os cristãos até o século 4. Foi o Concílio de Niceia -- hoje Isnik, Turquia --, convocado e presidido pelo imperador Constantino I em 325 d.C., que dirimiu as divergências entre Alexandre de Alexandria (líder da corrente que defendia a divindade de Jesus Cristo) e os adeptos de Ário (que sustentava posição contrária). Ou seja, a aceitação da Encarnação foi, originalmente, um ato de política interna, porque Constantino temia rachadura em seu império.

A nova mentalidade passou a permear o comportamento ocidental. Até mesmo os papas do Iluminismo, como Voltaire e Diderot, que, pela primeira vez desde Constantino, lutaram pela extinção do Cristianismo, orientaram suas ações com base nos direitos humanos universais, que têm a ver com a percepção da dignidade do ser humano, conceito originariamente cristão.

É também o que demonstra obra recente do historiador britânico Tom Holland, “Do domínio - O Cristianismo e a criação da mentalidade ocidental”, editado pela Record, em que mostra como esse conceito deixou marcas profundas em todos os campos do desenvolvimento humano no Ocidente.

Isso nada tem a ver com profissão de fé. É apenas conclusão, que pode ser considerada de orientação secular de quem avalia a evolução da cultura.

Enfim, o Natal deve ser visto em sua dimensão mais ampla como fenômeno que impregna corações e mentes, até mesmo neste nosso tempo, marcado pelo materialismo, pela indiferença e pelo agnosticismo.

Celso Ming é comentarista de economia