Arquitetura da sobrevivência

O exacerbado crescimento populacional ocupa os espaços urbanos com mais rapidez do que a administração pública consegue planejar, executar ou administrar

Por Cruzeiro do Sul

 

O exacerbado crescimento populacional tem causado efeitos de natureza social, econômica e política, os quais repercutem no exercício da administração pública, gestora da cidade e competente para elaborar e executar o planejamento urbano. Cabem alguns comentários que abaixo seguem.

Em face do efeito social, cria divisores de ambientes urbanos em relação aos quais os grupos sociais se separam e se distinguem uns dos outros em razão dos costumes -- modus vivendi -- dos habitantes e da localização dos bairros, vilas e comunidades. Formam classes, grupos, “tribos” ou outras distinções.

Em face do efeito econômico, faz surgir diferenças entre classes que definem seus espaços urbanos pelo poder econômico do grupo social ou pela concentração de renda de cada pessoa ou família. Os mais favorecidos encontram os melhores espaços (ou trechos) urbanos, enquanto os menos são destinados aos locais onde a infraestrutura urbana é deficiente ou inexistente.

Em face do efeito político, cria dificuldades ao planejamento urbano conduzido pela administração pública, em razão das limitações impostas pela legislação ao administrador e aos agentes públicos. Enquanto eles podem fazer apenas o que a lei expressamente autoriza, o particular pode fazer tudo o quanto a lei não proibir. Surgem àqueles obrigações que não são impostas ao particular; são exemplos a licitação e os concursos públicos, cujas regras são fixadas pela lei e não ao talante do administrador público.

Diante desse panorama, o exacerbado crescimento populacional ocupa os espaços urbanos com mais rapidez do que a administração pública consegue planejar, executar ou administrar. Surgem dicotomias entre ela e a população em geral e entre a desprovida de infraestrutura em especial, que constrói habitações e outros edifícios com recursos financeiros, técnicos e culturais próprios. O resultado são edifícios aglomerados uns com os outros, implantados em espaços separados por ruas, becos, corredores ou trilhas, sem qualquer planejamento prévio.

Muitas das habitações são construídas com a finalidade de servirem, tão-somente, de abrigos aos moradores e às famílias deles, sem outros fins que poderiam se agregar aos imóveis. Tais obras não têm estética, não seguem nenhuma corrente arquitetônica nem estas são pensadas. O adensamento populacional que delas surge conspira contra o conforto e a salubridade dos ambientes, devido à redução da iluminação e ventilação, alterações da acústica e temperatura e eliminação total da ergonomia.

Os habitantes dessas áreas ocupadas sobrevivem à mercê da própria sorte, porque são desprovidas da urbanização que a administração pública tem o dever legal de planejar e realizar, mas não consegue executar o projeto urbanístico antes que nele possa incluí-los, devido às obrigações legais que deve cumprir.

Conclusivamente, arquitetura da sobrevivência é o conjunto de edifícios -- habitações e outros -- erguidos pelas classes menos favorecidas com a finalidade de assegurar a sobrevivência de cada morador, ainda que com o sacrifício do conforto e da salubridade que o planejamento urbano oferece a quem dele se beneficia. Nada a mais.

Marcelo Augusto Paiva Pereira é arquiteto e urbanista