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Dom Julio Endi Akamine

Transmitir a vida

A Sagrada Tradição é um ato vital da Igreja e não uma ação mecânica

06 de Novembro de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
Dom Júlio Endi Akamine.
Dom Júlio Endi Akamine. (Crédito: Manuel Garcia / Arquivo JCS (11/7/2019))

Muita gente torce o nariz quando ouve falar de “tradição”. O ser humano, porém, é tradicional, ou seja, transmite seu patrimônio material e espiritual para as gerações seguintes. A tradição é um fenômeno próprio da humanidade: com ela transmitimos aos outros não somente os genes, mas também a cultura, os valores, as descobertas, a forma de convivência, as instituições. A própria vida humana é uma contínua transmissão de si mesma ao longo das gerações.

Quando falamos de “Sagrada Tradição” é preciso levar em conta que o patrimônio transmitido, recebido, conservado, vivenciado e novamente transmitido é constituído pela própria Revelação divina. Pela Tradição, a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, continuamente transmite a própria Vida divina que ela mesma recebeu de Cristo. Assim a transmissão da Revelação comunica o que é necessário para a vida santa e eterna.

A Sagrada Tradição tem sua origem na pregação e obra de Jesus (cf. Mt 5,21-22): Ele deu início a uma nova lei e a uma nova Vida (cf. Mc 10,5). Dele os apóstolos receberam a missão de transmitir o que viram e ouviram. A Igreja dos Apóstolos obedeceu fielmente a esse mandato e transmitiu a mensagem de Jesus interpretando sua palavra e sua obra à luz do acontecimento da revelação, através da pregação oral e por escrito. Para garantir a continuidade da transmissão e para prevenir os erros possíveis, os apóstolos encarregaram outros que se tornaram os seus sucessores.

A Sagrada Tradição é o prolongamento vital e ativo, por meio da doutrina, da vida e do culto, daquilo que a Igreja é e crê. Assim a Igreja, animada pelo Espírito Santo, continua a sua recepção vital e a comunicação do dom apostólico original. Por isso a Sagrada Tradição cria, a cada época, um contexto espiritual de natural afinidade com a Sagrada Escritura, no qual é lida, compreendida e vivida como Palavra de Deus que suscita a fé.

A Sagrada Tradição é um ato vital da Igreja e não uma ação mecânica. Se a tradição fosse mera transmissão material, bastaria uma fotocopiadora ou uma eficiente rede social para transmitir a Revelação. O que os apóstolos nos legaram, porém, não pode ser encerrado em documentos. Eles instituíram sucessores exatamente por causa da fecundidade da Revelação e para respeitar o dinamismo interno de progresso do depósito da fé. Com efeito, o Evangelho vivo só pode ser carregado por pessoas vivas com a assistência do Espírito Santo. É o Espirito Santo que escreve o Evangelho vivo no coração dos fiéis antes de inspirar a inscrição dele nos meios materiais. A Revelação vive na consciência dos apóstolos, dos seus sucessores e de todos os fiéis.

Por que transmitimos a fé? Transmitimos a fé porque Jesus nos ordenou: “Ide, fazei discípulos de todas as nações!” (Mt 28,19). Nenhum cristão autêntico deixa a transmissão da fé apenas ao cuidado dos especialistas. Somos cristãos para os outros. Isso significa que cada cristão autêntico deseja que Deus chegue também aos outros. A Sagrada Tradição é um processo que inclui todos os cristãos.

Madre Teresa utilizou uma metáfora: “Observe os fios elétricos ao longo da estrada. Se a corrente não passa por eles, não há luz. O fio é o que somos: você e eu. A corrente elétrica é Deus. Temos o poder de a deixar passar através de nós e, assim, fornecer ao mundo a luz, que é Jesus, ou de recusarmos que Ele Se sirva de nós, permitindo, com isso, que a escuridão se alastre” (Youcat, 11).

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba