Filmes da Netflix: ‘Escritores da liberdade’ (parte 2 de 2)

Por Cruzeiro do Sul

Eliana Batista Souza, citada na semana passada, afirma também que Erin Gruwell é uma profissional que carrega em si a esperança. Não a esperança que espera, e sim a esperança freireana, aquela que faz levantar, ir atrás, construir, não desistir, levar adiante e junto com os outros, fazer de outro modo, conforme escreveu Freire em ‘Pedagogia da Esperança’.

Erin compreende, assim como Freire já nos advertia, que se fazer professora, educadora é ter disposição para a “briga justa, lúcida, em defesa de direitos” (Freire, ‘Professora sim, tia não’) e não se deixa abater nem pelo conformismo dos colegas, pelo autoritarismo da diretora da escola ou pelo pacote de conteúdos que desconsiderava o seu público. Ela considera os alunos como depósitos de conhecimento, fugindo da educação bancária, ou seja, aquela que Freire definiu como a que desconsidera o contexto sócio-cultural e os conhecimentos dos aprendentes.

A professora cria, torna-se protagonista da sua profissão, não uma mera reprodutora de conteúdos. Ela parte do tema violência para trabalhar a literatura, o que podemos chamar de tema gerador a partir da proposição de Freire. O tema gerador parte daquilo que os discentes conhecem de forma a desencadear discussões problematizadoras. É o que acontece com o Diário de Anne Frank que os afeta extremamente. A história da menina judia de 13 anos escondida do nazismo num sótão em Amsterdam, contexto que talvez eles nunca tenham ouvido falar antes, leva-os a reler o próprio mundo. Isso acontece porque “a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele” (Freire, ‘A importância do ato de ler’). Ao ter a possibilidade de reler o próprio mundo e ao fazê-lo não são mais meros leitores ou apenas personagens, têm a possibilidade da crítica trazida pela conscientização, ou seja, ao entranharem-se no conhecimento da própria realidade, têm as possibilidades de emergir no conhecimento de sua própria condição e escrever a própria história.

Paulo Freire tem sido objeto de críticas raivosas da ultradireita brasileira por causa de sua metodologia de ensino inclusiva, mas a maior parte dos que o rejeitam repetem o que ouviram falar de outros que também não o leram. O espectador do filme presencia a eficácia de seu método aplicado à difícil fase da adolescência.

Infelizmente, “Escritores da liberdade” tem defeitos. É longo, recheado de passagens que nada agregam à narrativa principal e apenas servem preencher tempo com lugares-comuns adequados ao suposto gosto do grande público. Aí se encaixam os problemas domésticos da jovem professora que tem de enfrentar o abandono de um marido invejoso do seu sucesso (a propósito, esse marido simplesmente desaparece de cena sem deixar vestígios na vida emocional de Erin). O filme tem embates entre níveis de hierarquia na escola (um clichê em filmes do gênero policial desde a década de 1940), em que um subordinado tem de vencer a estúpida resistência do chefe. A cena final em que os alunos se regozijam com o fato de continuarem a ter Erin como professora é lamentável como todos os clichês. Como diz meu amigo pintor Pedro Lopes, “onde há clichê não há arte”.

Está série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec

nildo.maximo@hotmail.com