Restauração: os três italianos

Em suma, os três italianos inovaram nas doutrinas ao desenvolverem o restauro filológico, que deu natureza científica às intervenções, tanto na arquitetura quanto no urbanismo

Por Cruzeiro do Sul

Marcelo Augusto Paiva Pereira.

Marcelo Augusto Paiva Pereira

Na primeira metade do século XX, três italianos, Camillo Boito (1834 - 1914), Gustavo Giovannoni (1873 - 1947) e Cesare Brandi (1906 - 1988), inovaram no espaço doutrinário da restauração com a criação da restauração filológica. Seguem os comentários abaixo.

Camillo Boito elaborou posição moderada entre Viollet-le-Duc e Ruskin. Teve influência da restauração do francês e do dueto nostálgico-romântico do inglês, mas se opôs à retroatividade, à unidade estilística e à conservação das ruínas.

Boito criou o restauro filológico, cuja intervenção prestigia o valor documental da obra e dela faz testemunho do período histórico. A restauração é intervenção mínima, a preservar a memória e os valores naquela implícitos. Depende de um juízo crítico decorrente das pesquisas e estudos do restaurador, para escolher o que deve permanecer -- ou não -- na obra.

Acréscimos e adições devem ser evitadas; se não for possível, deverão indicar a contemporaneidade delas e não poderão colidir com a estética da obra (ele não admitiu a clonagem de peças). Projeto e criatividade fazem parte da restauração, mas deve-se evitar a fantasia, o devaneio e a vaga ideia do que teria sido, para não perder a autenticidade. Também acolheu a conservação como instrumento de preservação e o registro das obras.

Gustavo Giovannoni acolheu o restauro filológico de Camillo Boito, mas o estendeu ao espaço urbano, além do arquitetônico. Para ele, a restauração também é intervenção mínima, deverá distinguir os extratos temporais e não acolhe a repristinação (recuperação da unidade estilística) da obra.

Elaborou, então, o método do desbastamento para ajustar a leitura urbana. É caso de intervenção pontual, seletiva, elimina formas (edifícios) e preserva outras com o fim de melhorar o conjunto urbano e permite ao antigo expor-se em harmonia. Depende de juízo crítico decorrente das pesquisas e estudos do restaurador.

Cesare Brandi excluiu o empirismo da restauração. Também acolheu o restauro filológico enquanto ato científico e crítico. Conferiu, porém, prevalência do estético, sem prejuízo ao valor documental e histórico da obra. A ele a restauração deve respeitar o passado e alinhá-lo com o tempo, enquanto os monumentos são documentos e obras figurativas com significado simbólico e social.

Elaborou dois axiomas: 1º) restaura-se somente a matéria (o processo mental criativo não pode ser atingido); 2º) a restauração visa somente ao restabelecimento da unidade potencial da obra, sem eliminar os sinais do transcurso do tempo na obra.

Elaborou dois princípios: 1º) a restauração deve distinguir os períodos históricos da obra, inclusive os da própria restauração; 2º) a restauração deverá facilitar eventuais intervenções futuras na obra. Assim como os axiomas, ambos também têm natureza objetiva e evitam o falso histórico e a clonagem de peças.

Em suma, os três italianos inovaram nas doutrinas ao desenvolverem o restauro filológico, que deu natureza científica às intervenções, tanto na arquitetura quanto no urbanismo. E, diferentemente de Viollet-le-Duc e de John Ruskin, mensuraram cada intervenção para atualizar a obra sem modificá-la nem perder a autenticidade. Nada a mais.

Marcelo Augusto Paiva Pereira é arquiteto e urbanista