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Dom Julio Endi Akamine

Guerra mundial

Demos um basta à trágica corrida às armas (...) Deixemos à próxima geração, um mundo mais pobre de coisas e de dinheiro, porém, mais rico de humanidade

06 de Março de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
Dom Julio Endi Akamine.
Dom Julio Endi Akamine. (Crédito: Manuel Garcia (11/7/2019))

Dom Julio Endi Akamine 

A guerra na Ucrânia nos pôs diante da triste e angustiante guerra mundial não só como possibilidade e sim como realidade. O papa Francisco, no ano passado, já tinha chamado a atenção para uma “terceira guerra mundial por pedaços”. As situações de violência vão-se multiplicando cruelmente em muitas regiões do mundo, a ponto de assumir os contornos daquela que se poderia chamar uma “terceira guerra mundial por pedaços” (Fratelli tutti, 25).

A guerra na Ucrânia está circunscrita a alguns países, mas o seu conflito se disseminou por todo o mundo. Mesmo limitada a uma região do planeta, o enfrentamento gerado por essa guerra se globalizou. Ela pôs em lados contrários nações e povos. Junto com essa guerra, os numerosos conflitos que continuam a ensanguentar nosso mundo -- as tantas guerras esquecidas que não chamam a atenção nem atraem a solidariedade do mundo -- nos leva à triste constatação de que pedaços de terceira guerra mundial estão espalhados por todo o orbe da terra.

Alastra-se no mundo essa guerra mundial, enquanto que no coração das pessoas se difunde um “elegante” desprezo pela vida também da própria que encontra suas razões na solidão e falta de sentido em que vivemos. Por isso, aumenta o suicídio inclusive em suas formas maquiadas: acidente de trânsito, abuso de droga, de álcool e de comida. Quando o ser humano é abandonado em sua solidão, ele perde o senso da vida como dom e se aproxima perigosamente da morte. A guerra é o resultado final mais perverso de um mundo sem misericórdia!

F. Nietzsche pode ser considerado o arauto de uma sociedade sem misericórdia. “A compaixão contraria inteiramente a lei da evolução, que é a lei da seleção natural. A compaixão preserva tudo o que está maduro para perecer; luta em prol dos desterrados e condenados da vida. O homem perde poder quando se compadece. Nada é mais insalubre, em toda nossa insalubre modernidade, que a compaixão cristã (O Anti-Cristo)”. Uma sociedade onde os doentes, os idosos, os não-nascidos não tem lugar é uma sociedade desumana e cruel. A falta de misericórdia e a falta do Deus Misericórdia leva a sociedade a planejar, a justificar e a organizar a morte.

O mundo não buscará o Divino Médico enquanto não admitir que está desesperadamente doente do nada e da falta absoluta de sentido. A falta de um grande sentido é a fonte da pior morte. Segundo Nietzsche, o niilismo é “o convencimento da inutilidade, a incoerência, o sem-sentido e o sem-valor da realidade”.

Há uma paradoxal concordância entre o niilismo e os místicos cristãos. Com efeito, os místicos vislumbraram em suas visões mais terríveis que o inferno não é fogo nem demônios com tridentes, e sim almas vagando na escuridão, sem destino, esperança e propósito. Essa imagem do inferno é mais horripilante do que o fogo e o enxofre porque, no fim das contas, é verdadeira.

Em um mundo sem misericórdia é preciso “tentar despertar em mim e nos outros uma compaixão viva por todos” (papa Francisco).

É o momento de tornar real algo da profecia de Isaías, da qual a humanidade desde sempre aguarda o cumprimento. Transformarão suas espadas em arados e suas lanças em foices: não pegarão em armas uns contra os outros e não mais travarão combate (Is 2,4). Demos um basta à trágica corrida às armas. Destinemos os intermináveis recursos empregados às armas a outras finalidades melhores e urgentes: a saúde, o saneamento, a alimentação, o cuidado da criação. Deixemos à próxima geração, um mundo mais pobre de coisas e de dinheiro, porém, mais rico de humanidade.

A fé cristã não é simples adesão a uma verdade revelada; é nossa resposta a Deus amor! Deus Amor Infinito está na origem da nossa fé, ou melhor, está na origem da nossa própria existência. Sou pensado, por isso existo! Sou desejado, por isso existo! Sou amado, por isso existo! Existo para o amor e não para a guerra!

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba.