De anônimos heróis

Sem os cobaios, Roux (1897) não teria criado a vacina antidiftérica

Por Cruzeiro do Sul

Sem rins de macacos nem Salk nem Sabin teriam chegado às vacinas contra a poliomielite

Edgard Steffen

David Bennett, 57 anos, doente cardíaco terminal, recebeu um coração de porco, e passa bem. (Dos jornais)

A Escola de Medicina da Universidade de Maryland (USA) anunciou ter feito, com sucesso, um xenotransplante num paciente cardíaco terminal. Para evitar a rejeição, inativaram três genes que agiriam contra o tecido suíno e introduziram seis outros genes humanos para modificar o genoma. Até onde sei, não houve protestos das ongues de proteção aos animais. Nem deverão ocorrer.

Assumam o comando. Sejam responsáveis pelos peixes no mar, pelas aves no céu e por todo ser vivo que se move sobre a terra, reza o Gênesis 1:28, segundo registrado em “A Mensagem -- Bíblia em linguagem contemporânea”.

Vidas humanas importam. Independentes de geografia, raça, idade, sexo, religião, minoria/maioria, convicção política ou filosófica. Importam porque a racionalidade fez o Homo sapiens -- sem perda total das ações instintivas -- capaz de evoluir como espécie e entender (em parte) o Éden perdido por Adão/Eva. Segundo a ordenança divina, apesar da fragilidade física, dominou sobre o bioma e dele se utilizou, e ainda se utiliza, para alimentação e abrigo.

Vidas animais e vegetais importam. Por isso o bicho-homem criou leis divergentes conforme a geografia e a cultura de proteção à fauna e à flora. Hoje, consumidores em todo mundo querem a certeza de que o produto que adquirem não procede de desmatamento ilegal ou, no caso das carnes, que o abate seja feito com mínimo de sofrimento.

O Julgamento de Nurenberg abriu os olhos da comunidade internacional para os experimentos com humanos. Apesar de todas as provas fotográficas, documentais e testemunhais, os envolvidos no uso de anima nobili em experiências médicas nos campos de concentração e extermínio não puderam ser condenados, porque não existiam leis que as proibissem. O uso de prisioneiros, minorias raciais e deserdados sociais macularam experimentos em todo o planeta. Desse pecado nem as democracias escaparam. Hoje, protocolos rígidos impedem a exploração do homem pelo homem, mesmo que a bem da Ciência.

Esta muito deve aos animais de laboratório. Nada é diretamente ensaiado em humanos. Muito dos progressos na produção de soros, vacinas e medicamentos se deve ao uso de animais de laboratório. Sem os cobaios, Roux (1897) não teria criado a vacina antidiftérica. Sem rins de macacos nem Salk nem Sabin teriam chegado às vacinas contra a poliomielite.

Milhares de pessoas sucumbiriam aos venenos de cobras e animais peçonhentos não fossem os cavalos do Butantã.

Por que, agora, coração de porcos? Em tamanho, a bomba cardíaca dos suínos é igual à dos humanos. Antes de realizar o 1º transplante na Cidade do Cabo (África do Sul), Christian Barnard estagiou nos USA em serviço de cirurgia experimental. Porcos eram os animais usados. No hospital da África do Sul, mantinha criação de suínos para treinamento das técnicas e manobras cirúrgicas. O hábil Hamilton Naki, serviçal da pocilga, foi designado para retirar o coração do corpo da doadora. Barnard ficou com a fama. Naki, por negro e pobre, no país do apartheid, permaneceu escondido.

Escondidos na história da Biologia e da Medicina, ficarão todos os pesquisadores sobre microbiologia, imunologia, códigos genéticos em dupla hélice e por aí afora. Possibilitaram transplantes salvadores de vidas. Alguns serão lembrados por terem auferido prêmios de grande repercussão.

Mais escondidos ainda os milhares de animais sacrificados nas pesquisas poupadoras de vidas humanas. Não ostentavam nomes. Eram identificados por números.

Exceções ligam-se às guerras terrestres ou espaciais. A Rússia erigiu um marco para a vira-lata Laika (1957) primeiro ser vivo a orbitar (e morrer torrada) em torno do planeta azul. O chimpanzé Ham (1971), levado ao espaço e resgatado com vida pelos americanos.

Nesta semana faleceu a heroína Nagawa. Salvou muitas vidas no Camboja, localizando minas e bombas, numa área equivalente a 42 campos de futebol. Aposentada, recebeu a maior condecoração concedida aos de sua espécie. Nagawa era uma fêmea de rato-gigante-africano.

Edgard Steffen (edgard.steffen@gmail.com) é médico, escritor e membro da Academia Sorocabana de Letras (ASL)