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Leandro Karnal

O defeito que me empurra

Somos poliedros complexos e recalcamos tanto quanto enunciamos. Melhor: enunciamos pelo recalque e isso se torna parte de nós

09 de Janeiro de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
Artigo Leandro Karnal
Artigo Leandro Karnal (Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

Leandro Karnal

Perguntam a você, no meio da vida ou indo para um belo outono biográfico, como foi sua trajetória. Temos uma tendência: localizamos em nossas virtudes a jornada vitoriosa. Como você chegou até aqui? Dedicação, esforço, resiliência, sacrifício, foco, temperança, trabalho e dezenas de outras boas qualidades são a legenda do quadro bonito da maturidade. “Estou no ponto atual porque ralei muito”, digo com ar pedagógico a alunos, jovens, filhos e funcionários. Serve como estímulo e autoelogio: “Façam o que eu fiz e vocês estarão aqui, quando tiverem a minha idade”.

As narrativas que constroem modelos de virtudes fazem muito sucesso, especialmente se parecem explicar a trajetória por intermédio de coisas dignas de orgulho e menção. Certamente, existe verdade na história edificante. É óbvio que eu me esforcei. Minha inquietação psicanalítica trouxe outras possibilidades.

E se questões não tão bonitas também fossem gestoras da minha vida? Exemplo: passei grande parte das tardes de sábado na biblioteca pública perto da minha casa, em São Leopoldo (RS). Lá eu lia revistas, jornais, livros de arte e narrativas de viagens. Muitas vezes, no futuro, em aulas e palestras, usei informações colhidas na adolescência em maratonas prolongadas naquele espaço. O que lhe parece? Um jovem obstinado, devotado aos livros, desejando aumentar seu conhecimento. Verdade? Sim, mas... e se eu acrescentasse o elemento tédio? Sim, pouco ou nada para fazer no sábado à tarde e um espaço tranquilo de leitura isolado, sem ninguém para atrapalhar. Além do tédio, e se fosse certa timidez e vontade de isolamento? Eu não tinha um quarto só meu e não podia ostentar uma escrivaninha individual. Na Biblioteca Pública Municipal Olavo Bilac (hoje Vianna Moog), havia meu espaço delimitado, garantido e silencioso. Foi o foco no conhecimento ou a falta do que fazer? Teria sido o desejo de voar nas leituras ou a vontade de me isolar da família?

Com certeza, décadas depois daquelas tardes, a melhor explicação é falar do meu esforço no cultivo das virtudes. Sempre melhor desviar o tédio para livros do que para drogas. Curiosamente, o que pode levar um jovem a beber demais ou ler compulsivamente é a mesma base: o complexo enfrentamento com o mundo. Assim como um drogado ressignifica seu vício em uma igreja vibrante, o entediado pode tomar o caminho dos textos ou do bar.

Quanto do seu esforço profissional foi dado pelo ressentimento social? Eu quero crescer, desejo ter mais para não enfrentar a dor humilhante da crise? Atrás da construção de uma carreira exitosa, vemos muitos valores. Poderíamos identificar medos, dores e carências?

Casei e tive filhos por um projeto lindo de família ou por medo agudo da solidão, em especial na velhice? Guardei dinheiro porque sou um gênio estratégico ou por causa da minha profunda covardia e atroz insegurança? Quantos esqueletos o vistoso armário do meu sucesso oculta?

Penso em uma grande perda do ano passado: Nelson Freire. Nosso maior pianista era um talento insofismável. Era também tímido quase em ponto patológico. O piano era sua vocação, claro, todavia foi seu refúgio para não falar tanto com as pessoas. A timidez do mineiro foi protegida pelas horas intermináveis de estudo. Era um sacrifício ou uma libertação?

Introduzo o contraditório na nossa lógica de memória. Pessoas superorganizadas podem ser caóticas no campo interno. Inevitável perceber que quase tudo contém o seu contrário e minha luz reforça minha sombra. Imaginei, neste ano que se inicia, como seria bom entender que meu medo e meu tédio podem ser bons estímulos para eu crescer. Talvez seus defeitos sejam tão importantes para seu progresso como suas virtudes. Nossa narrativa sobre a carreira ganharia muito se incluíssemos o lado menos glorioso da nossa radiante vaidade. Somos poliedros complexos e recalcamos tanto quanto enunciamos. Melhor: enunciamos pelo recalque e isso se torna parte de nós. Seria como manifestar orgulho da límpida água que entra pela minha boca sem levar em conta a fétida urina que, ao sair, manifesta que o ciclo inteiro e útil da hidratação foi realizado. Como se eu pudesse ser apenas água transparente e não a totalidade do processo. Seria útil, especialmente para os jovens, que, ao perguntarem sobre minha jornada de sucesso, eu começasse dizendo: “Cheguei aqui com medo, entediado, cheio de inseguranças, dialogando com meus fantasmas, errando bastante e tropeçando tanto quanto seguindo rotas elaboradas”. Acho que isso ajudaria mais quem quer pensar sua trajetória. Em resumo, o esqueleto do armário existe e faz parte de mim, tal como a pele que exibo após horas intermináveis no dermatologista e, questionado, digo que apenas a lavo bem toda noite... Se um dia eu recebesse um Oscar, agradeceria diante das câmeras: “Obrigado ao meu medo e ao meu tédio, sou o que sou graças ao esforço deles”. Há esperança para seus defeitos, querida leitora e estimado leitor?

Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras