Buscar no Cruzeiro

Buscar

Leandro Karnal

Três vezes 22

Um ponto em comum aos dois momentos: o mundo acabava de passar por pandemias e o medo ecoava na festa

02 de Janeiro de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
A memó­ria foi construída para dar forma grandio­sa a um acontecimento um pouco diferen­te daquilo que Pedro Américo retratou no quadro de 1888
A memó­ria foi construída para dar forma grandio­sa a um acontecimento um pouco diferen­te daquilo que Pedro Américo retratou no quadro de 1888 (Crédito: Reprodução internet)

Leandro Karnal

O ano de 2022 marca o bicentenário do chamado “Grito do Ipiranga”. A memória foi construída para dar forma grandiosa a um acontecimento um pouco diferente daquilo que Pedro Américo retratou no quadro de 1888. Por algum tempo, a data da nossa Independência foi o 12 de outubro, quando o príncipe português D. Pedro foi aclamado Imperador.

No instante em que você pesquisa jornais da época, não encontra referências às “margens plácidas” do riacho anabolizado do Hino Nacional. Porém, a aclamação de outubro, data do aniversário do novo governante, era percebida como a festa da emancipação.

Avancemos um século. Em fevereiro de 1922, um novo grito de ruptura. O Teatro Municipal de São Paulo via, em três noites, o impacto da Semana de Arte Moderna. Como todo evento histórico, a avaliação depende do que ocorreu naquele momento em diálogo com construções posteriores. Houve enorme esforço de intelectuais paulistas para concentrar na Semana de 22 a grande ruptura estética da República Velha. História é sempre um diálogo do passado com o presente.

Assim, o ano em curso traz outros dois 22 nas recordações: Independência do Brasil e Semana de Arte Moderna. Três vezes 22 é algo forte e simbólico. Percebendo o fato, a USP e a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin prepararam o portal 3 x 22.

Lá, há publicações voltadas para escolas e para o público em geral. Por exemplo: quais os 200 livros que elaboram um amplo retrato do Brasil? É uma excelente iniciativa coordenada por Alexandre Macchione Saes e Janice Theodoro e pode ser acessada em 3x22.bbm.usp.br.

Os profissionais das escolas podem baixar material sobre as representações da Independência, sobre mulheres no processo de emancipação nacional, a vida na periferia de São Paulo ou sobre os indígenas do território brasileiro.

Há uma pergunta provocativa na origem do projeto: “Nenhum Brasil Existe. Acaso Existirão os Brasileiros?” Por absurda que pareça, fala-se da dificuldade em delimitar o que seria a sociedade brasileira e, por consequência, tipologias dos seus habitantes.

Em artigo no Jornal da USP (8/11/2021), Janice Theodoro afirma sobre o papel da universidade no itinerário do debate: “Qual o desafio das universidades na atualidade?” Utilizar o conhecimento nela produzido para enfrentar os desafios contemporâneos.

Utilizar seus computadores, criar condições para que seus pesquisadores, literatos, historiadores, cientistas sociais, comunicadores, artistas (entre outros) disponham de condições para formar redes capazes de compreender os algoritmos que podem levar a comportamentos que marcam nosso mundo.

Comemorações são, como indica a base latina da palavra, lembranças em conjunto. Comemorar indica trazer, coletivamente, ao plano da consciência algo ocorrido. Memórias são mutáveis, claro. O centenário da Independência exposto no Rio de Janeiro, em 1922, foi uma celebração de um tipo de Brasil afrancesado e eurocêntrico. Certamente, o bicentenário terá vozes mais variadas. Nós mudamos muito em cem anos.

Um ponto em comum aos dois momentos: o mundo acabava de passar por pandemias e o medo ecoava na festa. A Gripe Espanhola estava um pouco afastada em 1922 e o malfadado coronavírus ainda ronda o ano novo que vivemos há pouco.

Como todo aniversário, 2022 traz avaliações. O que houve com o País nos últimos 200 anos? Onde está a cultura e para onde foram as vanguardas do século passado? Todo Parabéns a Você relembra, comemora, celebra, exorciza e renova o limiar do futuro como possibilidade.

Lembro-me do sesquicentenário da Independência 1972 e os discursos nacionalistas e triunfais do governo Médici. Recordo-me de Tarcísio Meira a cavalo a partir do modelo canônico no filme Independência ou Morte.

Como cantávamos no colégio São José (São Leopoldo, RS): “Sesquicentenário da Independência / Potência de amor e paz / Esse Brasil faz coisas / Que ninguém imagina que faz / É Dom Pedro I / É Dom Pedro do Grito/ Esse grito de glória / Que a cor da história à vitória nos traz / Na mistura das raças / Na esperança que uniu / O imenso continente nossa gente, Brasil / Sesquicentenário / E vamos mais e mais / Na festa, do amor e da paz”.

Eu tinha 9 anos, e achava que tudo era paz e integração, um milagre harmonioso de 1972. Resta a pergunta: que imaginário passaremos para alunos neste ano? Que elementos identificaremos para orgulho ou debate? Bem, sei que eu não estarei aqui na festa dos 250 anos da Independência. Torço pelo Brasil. Tenho esperança na comemoração futura...

Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras