O silêncio na pandemia

Artigo escrito por Leandro Karnal

Por Cruzeiro do Sul

Ao contrário dos carros que emitem ruídos estranhos, nossas mazelas não fazem ruído

“O pior som de uma pandemia é o que, em música, chamamos de pausa: o silêncio. Há algo ensurdecedor no que vivemos: vozes de mais de 600 mil pessoas que deixaram de falar. A morte é a coisa mais gritante e inaudível em perversa combinação. Ao contrário dos carros que emitem pequenos ruídos estranhos quando estão com algum problema, nossas mazelas físicas raramente provocam ruído. O vírus que avança, o tumor que se instala, a artéria que se entope de vez são, usualmente, um gato andando sobre um tapete grosso: nada se ouve.

Além do silêncio enorme causado pela pandemia, há o apagar de vozes importantes na arte. Músicos ficaram sem emprego, orquestras fecharam, deixamos de produzir shows e a pausa malévola dos palcos atingiu camarins, coxias, luzes e figurinos. Conviveremos muito tempo com os efeitos colaterais da pandemia na área cultural. Decidimos reabrir bares e restaurantes, depois escolas e, por fim, teatros e casas de espetáculo. O risco de contaminação é grande em todos; a ordem mostra algo do nosso mundo e dos valores que praticamos.

Talvez as crises históricas (guerras, revoluções, desastres naturais e epidemias) tenham sempre um efeito duplo. Por um lado, aceleram o que já estava posto. A Peste Negra do século 14 desestruturou o já claudicante feudalismo. A Grande Guerra (1914-18) fez ruir impérios decadentes e multinacionais como o turco-otomano ou o austro-húngaro. Porém, além de acelerar o que já era notado, os processos citados costumam revelar o que se tentava disfarçar ou se convivia sem alarde. As crises revelam muito o caráter dos seus atores e atrizes.

A pandemia desnudou muitas pessoas. Acompanhei gente que descobriu, enfim, o peso do desamparo da pobreza no Brasil. Alguns amigos se tornaram voluntários. O epítome da doação que brilhou ainda mais no caos sanitário e social que vivemos foi o padre Júlio Lancellotti. Sim, há quem o considere equivocado. Existem detratores da sua ação. Acusam a publicidade constante que ele intensificou com fotos em redes sociais. Um “agente do comunismo internacional”, aquele risco extraordinário que habita o fundo do último buraco da consciência de alguns reacionários. O comunismo no Brasil é como a neve no nosso País: sim, pode ocorrer aqui e ali de forma bissexta, acumula pouco sobre o solo, derrete ao sol e produz bonecos muito pífios com turistas encantados. Nosso comunismo é como a neve em Gramado, deleite de Instagram mais do que efervescência revolucionária...

Imagino que, estando com fome na rua, uma pessoa não olha para o padre Júlio e pensa: nossa, este cara está tentando me cooptar para um projeto político esquerdista baseado na sociologia de Marx e Engels. Acho que, quase todos, devem ficar agradecidos. A cena do padre Júlio batendo com marreta pedaços concretados de engenharia de sanitarismo social canhestro é uma das mais marcantes. Discorda? Sem problema: qual a sua prática cotidiana a favor de pessoas em situação de rua? Se você faz algo distinto e eficaz sobre a questão, então, tem condições de se posicionar de forma diferente. Para sair da rua, precisamos de esperança.

Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras.