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O último boêmio

Artigo escrito por Edgard Steffen

09 de Outubro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: ARQUIVO PESSOAL)

O tempo... esse implacável metrônomo
(Versos para Moacir Martins -- A.C. Penna)

Diálogo da 3ª Idade. -- Não aguento mais essa rotina da pandemia. Tudo sempre igual. -- Igual coisa nenhuma. Cada dia dói uma junta diferente...

A ONU reservou o 1º de outubro como Dia Internacional do Idoso e a OMS, por sua vez, definiu Envelhecimento Saudável como processo de desenvolvimento e manutenção da capacidade funcional que permite o bem-estar em idade avançada. Objetivo: chamar a atenção da comunidade mundial para o aumento da população de anciãos e para os problemas ligados ao envelhecimento. As estatísticas apontam que os idosos beiram os 30 milhões (14,3% da população brasileira) e as projeções para a próxima década indicam que o grupo com idade superior a 60 anos será maior que a faixa etária 0 a 14 anos.

Difícil, nestes anos de pandemia, sobreviventes verem os amigos partirem, sem poder pranteá-los junto com as respectivas famílias.

Dos velhos amigos que permaneceram em Indaiatuba só me restavam dois: por coincidência, dois barbeiros que gostavam de cantar. Faziam parte de um trio (Rubinho, Clóvis e Moacir) desfeito pelos respectivos casamentos. Afinadíssimos, eram parte da trilha sonora nos tempos do Bar Rex.

O sobrevivente Clóvis Civolani, 91 anos, usa marcapasso mas está bem. Aposentou a navalha e a máquina de tosar cabelo (herdados do pai) há muito tempo. Alto, boa pinta, fazia parte daqueles jovens que fundaram o Guaianazes para jogar vôlei e bola-ao-cesto. Era o maior sucesso com as meninas (como eram chamadas as adolescentes; nem brotos nem minas). Cordato, temperamento afável, religioso, homem de família. Numa das últimas vezes que o encontrei, trocara os bares pelo coro da matriz.

O outro amigo -- Moacir Martins -- nos deixou este ano. Tinha DNA musical. Seu pai era professor de música e maestro da banda municipal; seu irmão caçula, precoce musicista, tocava vários instrumentos. Ao Moacir -- estatura média, voz pausada e temperamento do bem -- Indaiatuba bastava. Nunca se afastou de sua terra mais que algumas dezenas de quilômetros. Seu primeiro trabalho foi o de vaga-lume no Cine Rex. Desde que aprendeu a profissão de Fígaro, exerceu-a no mesmo quarteirão da mesma rua. Tão presente quanto os petrechos profissionais, o violão fazia parte do cenário. Nas folgas, dedilhava-o plangente (como o fez no dia da morte de Chico Viola, Rei da Voz ) ou álacre (quando o São Paulo vencia algum jogo importante).

Não bebia. A amava serestas e tertúlias. Certa madrugada fria e chuvosa, condoeu-se de um cidadão que se abrigara à porta da barbearia (cômodo frontal da casa). Convidou-o a entrar e dormir sentado na cadeira de barbeiro. “Melhor o senhor dormir sentado e abrigado que pegar pneumonia aí fora. O banheiro, é a primeira porta do corredor. Vou deixar a porta encostada”, concluiu e entrou. Pela manhã, contou a proeza para a mãe. Assustada ela correu ao salão imaginando o prejuízo. O desconhecido já partira, sem levar nada. Talvez somente a gratidão pela bondade daquele boêmio sem malícia que o abrigara da gélida chuva.

Moacir tinha mais de 80 anos quando resolveu parar. Amigos filmaram e fotografaram seu último trabalho com a navalha e a tesoura. Não aposentou o violão. Recolheu-se para uma casa de chácara com a esposa e filhos. Morreu dois ou três anos após. Dormindo. Talvez sonhasse embalado pelas músicas que cantou ou compôs.

Penna, seu amigo dos tempos do bar Rex, versejou:

Moacir tilinta a tesoura, faz barba, faz cabelo
Ouve, argumenta, penteia
Gira a cadeira, torce as cravelhas
Procura o traste perfeito para um trecho de canção
Moacir olha a rua, bate a toalha, olha o tempo.
O tempo...
Esse implacável metrônomo.


Nota do autor Este artigo somente foi possível graças ao livro e as conversas com o escritor, poeta, historiador, fotógrafo e cantor Antonio da Cunha Penna -- mineiro que enriqueceu Indaiatuba com sua arte. Só não foi meu amigo de mocidade porque, quando chegou em Indaiá aos nove anos de idade, eu já era médico longe dali.

Edgard Steffen ([email protected]) é médico, escritor e membro da Academia Sorocabana de Letras (ASL).