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Ressentidos

Artigo escrito por Leandro Karnal

05 de Agosto de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

Talvez seja uma das molas da vida. É uma mágoa distinta do ódio simples. O ressentimento macera, curte, degusta até a acidez do seu sofrimento. É um sentimento que não espuma. Envenena mais do que explode. Rasteja nos recantos menos iluminados da alma e dialoga com certo orgulho: o mundo deveria ter me dado mais do que eu tenho. É um impulso doloroso de comparação com aquilo que os outros são ou o que eu imagino que sejam. Confraterniza com a inveja e a cobiça, porém possui quarto próprio no nosso interior.

Eça de Queiroz lançou “O Crime do Padre Amaro” em 1875. A cena ocorre no Concelho de Leiria. Quando eu li o texto na adolescência, parecia ser um panfleto contra a Igreja lusitana. Também é. Todavia, o escritor fala da hipocrisia social em geral e, acima de tudo, do ressentimento. Amaro Vieira é pobre e viveu de favores na casa de uma aristocrata. Foi encaminhado ao seminário pela protetora, atendendo mais ao desejo dela do que de um vivo interesse do menino. Ordenado, foi nomeado para uma paróquia pobre e fria. Buscando a família protetora antiga e seus laços políticos, conseguiu ser transferido para uma cidade maior. Lá é recebido como hóspede em uma casa de família e vem a se apaixonar pela jovem Amélia. A “rapariga” está destinada a um rapaz da região, João Eduardo. A inimizade entre os dois homens é inevitável. Evitarei dar spoiler de um romance com quase 150 anos.

O ressentimento existe em todos de Leiria: liberais, padres, senhoras beatas, autoridades e jovens críticos do capitalismo. Quando o padre Amaro entende que não poderá ter sua amada, elabora um pensamento forte no final do capítulo oito. Suspira pelo poder de outrora da Igreja. Típico do ressentido, atribui ao mundo atual sua fraqueza. Não inclui suas escolhas, culpa Portugal e o século 19.

O trecho é extraordinário. Reflete o pároco: “Abominava então todo o mundo secular -- por lhe ter perdido para sempre os privilégios: e como o sacerdócio o excluía da participação nos prazeres humanos e sociais, refugiava-se, em compensação, na ideia da superioridade espiritual que lhe dava sobre os homens. Aquele miserável escrevente podia casar e possuir a rapariga -- mas quem era ele em comparação dum pároco a quem Deus conferia o poder supremo de distribuir o Céu e o Inferno?...”. Percebe que é uma grande autoridade dentro da igreja, porém, mal saía da Sé e já era um cidadão fraco na praça. Necessitava que jovens como João Eduardo e Amélia tremessem como outrora os leigos o faziam, respeitando, com isso, a batina. Amaro, o padre, é tomado pela ambição que Eça diz existir em todo religioso, um desejo de “dominação universal”. Pode ser um subdiácono ou um abade, todos trazem, dentro de si, os “indistintos restos dum Torquemada”.

Quero poder e o mundo me nega. Culpados? Os liberais, o mundo laico, o espírito do tempo que me castram, podam, limitam e reduzem. Os outros recebem mais do que eu da vida, ainda que eu suponha ter mais direitos. Atenção: o ressentimento é muito envergonhado. Assume ares de justiça social ou de moralização do mundo. Não mostra a dor do indivíduo: alega que quer melhorar a sociedade. Precisa potencializar sua força, por isso atrai pessoas para instituições que contenham hierarquias e tradição. As igrejas, a política, os sindicatos, as universidades, as redes sociais trazem ressentidos sempre em altos postos. Estão lá, lutando por grandes causas, inclusive como o citado Torquemada que pretendia uma Espanha pura e fiel à Igreja.

As devotas de Leiria e os padres vivem uma vida de aparências. A fé é a da conveniência. Fofocam com furor. Julgam sem caridade. Encarnam mais o fariseu bíblico do que o bom samaritano. Lamentam não terem toda a força. Invocam a moral e a ordem. Os liberais? Atacam os padres por não possuírem o poder que imaginam na Igreja. O mundo é da sotaina para eles e os tonsurados dizem que o mundo pertence aos secularistas. Todos se sentem impotentes e garantem que, se tivessem todo o poder, instaurariam o reino da felicidade total. Quantos projetos sociais e políticos teriam sido mais bem debatidos em um divã psicanalítico do que em um jornal... O ressentimento pode suspirar por Deus ou pelo império da Razão, porém, continua sendo o que é. Claro, eu ressentido, não falo da minha impotência: busco o bem de todos e, humildemente, imagino que um mundo feito à minha imagem e semelhança seria muito melhor do que o atual.

Alguns reformadores transformam sua deficiência em projeto.

Machado de Assis não gostou do livro de Eça. Outros acusaram de ser plágio do enredo de um livro de Zola (“La Faute de l’abbé Mouret”). As datas não permitem pensar em inspiração ou plágio. Reli “O Crime do Padre Amaro” 40 anos depois da primeira leitura. Continua com trechos fascinantes e descrições hilárias.

O autor de Póvoa do Varzim parece mostrar que a vida social portuguesa era uma espécie de live, onde cada ator mostra o viés que acha conveniente. Eça revela e, assim, denuncia. Incomoda porque analisa cada imperfeição moral e ambiguidade humana. Qual teria sido o grande ressentimento de Eça? Ler ajuda a iluminar nossa esperança.

Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras.