Da ‘escolha de Sofia’ para a escolha das vacinas
Artigo escrito por Geórgia Racca
No início da pandemia na Europa, pudemos acompanhar o sofrimento dos profissionais da saúde que não tinham estrutura hospitalar para abrigar mais contaminados pela Covid-19 e tiveram que fazer a “escolha de Sofia” por aqueles que iriam viver, em detrimento de outros que, lamentavelmente, seriam sacrificados.
No brasil, não foi diferente. Mas, além da temível “escolha de Sofia”, nos deparamos com a indecente escolha de vacinas. Justo para nós, que já computamos mais de 550 mil mortes pela Covid-19.
De acordo com o princípio da legalidade inserto no artigo 5º, II da Constituição Federal: “Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Nem sempre o que imoral é ilegal. O caso das vacinas segue a mesma regra.
O cidadão, de acordo com a Constituição Federal, não é obrigado a tomar determinado fabricante de vacina se ele não quiser, isto não caracteriza conduta ilegal. Talvez imoral!
O entendimento do STJ é de que, nem mesmo o Poder Público pode criar leis que prevejam a compulsoriedade da vacinação. O cidadão não pode ser levado à força para se vacinar, mas há mecanismos de restrição de direitos que fazem com que o cidadão aceite a vacina para não ter os seus direitos restritos.
A prefeitura que obriga o cidadão a assinar um termo de recusa e o coloca ao final da fila, sem que haja uma norma legal na esfera municipal regulamentando a recusa, pratica ato ilícito. Contudo, se a norma existir, trata-se de mecanismo de restrição de direitos.
Por este motivo é que algumas prefeituras, como a de Varginha (MG) têm, em conjunto com o Poder Legislativo, regulamentado a questão da recusa de vacinação pelo munícipe.
Sob o ponto de vista legal, a prefeitura que obriga o cidadão a se vacinar sob pena de colocá-lo ao final da fila, pratica ato ilícito, tanto pelo fato de que não há uma norma municipal regulamentando a conduta, como também a violação ao artigo 196 da Constituição Federal, que prevê o direito fundamental do cidadão à saúde.
Já sob o ponto de vista social, a conduta da escolha do fabricante de vacina só pode ser imoral!
A constituição Federal, em seu artigo 196, deixa claro que o Estado tem o dever de implementar políticas sociais para reduzir risco de doenças e, por este motivo, o governo tem a obrigação de divulgar e incentivar o uso de vacinas de todos os fabricantes -- já que todas foram testadas e são seguras --, visando garantir a política pública de vacinação para todos os cidadãos.
A escolha de vacinas nada mais é do que a falta de divulgação e incentivo do poder público nas questões sociais. Neste ponto, a população fica insegura e confusa, acreditando que um fabricante pode ser melhor do que o outro, quando na verdade, todos, de acordo com as pesquisas científicas, são eficazes e seguros.
Neste sentido, o governo não pode obrigar o cidadão a se vacinar, mas pode criar mecanismos que condicionem o gozo de certos direitos, caso o cidadão não se vacine, sendo possível a criação de normas em que haja restrição de determinados direitos, como, por exemplo, a proibição de recebimento de benefícios do governo em caso de recusa à vacinação.
Inclusive, já existem leis que restringem a liberdade individual do cidadão em detrimento do bem maior, coletivo. Vide o exemplo do recebimento do Bolsa Família, em que um dos requisitos é que a carteira de vacinação da criança esteja em dia para o recebimento do benefício.
Um exemplo mais recente foi a confirmação, pela Justiça do Trabalho, da demissão por recusa à vacina da Covid-19, validando a dispensa por justa causa aplicada pelo empregador.
Por este motivo é que a recusa à vacinação é um direito do cidadão, já que ele não é obrigado a fazer algo, senão em virtude de lei. Contudo, os mecanismos condicionantes permitem que o cidadão tenha seus direitos restritos, já que o interesse coletivo deve prevalecer e não a posição pessoal do cidadão.
A recusa de vacinação pelo munícipe coloca em risco não só a ele, como também toda uma sociedade.
Geórgia Racca é advogada especialista em direito médico e da saúde.