Buscar no Cruzeiro

Buscar

Remédios

03 de Abril de 2020 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Eu já disse aqui que as pessoas consomem literatura por vários motivos. Tem quem busque evitar a realidade sombria. Tem quem busque conhecer outros territórios e outros tempos. Tem quem busque personagens inspiradores. Tem quem busque conhecer mais a fundo uma dada situação. Tem quem busque a voz lúcida de um bom narrador. Cada um sabe onde o sapato aperta.

Pensando nas últimas décadas, a busca do leitor pelo alimento literário era fundamentalmente individual. O sujeito estava angustiado e via o mundo correndo normalmente ao seu redor. Só que agora tudo mudou. O mundo não está correndo normalmente ao nosso redor. A pandemia veio para mostrar a nossa fragilidade. Eu sei que é clichê, mas não posso fazer nada. Há sabedoria, dependendo das circunstâncias, nos clichês.

A literatura em tempos de desespero já vem sendo discutida nas redes sociais. Muita gente tem postado dicas de leitura no Facebook, no Instagram e no Twitter. É um alento. E é prova de que a literatura está forte. É um erro afirmar que ela está desaparecendo.

Não entrei na onda. Não gravei vídeos curtos em que mostro o que estou lendo. O material já é farto. Não vejo necessidade de carregar a rede com minhas palavras professorais. Pensando melhor: eu acho que não daria conta da empreitada. É que minhas leituras, nos últimos dias, não são facilmente sistematizadas. Foi-se o tempo em que eu conseguia encarar um livrão de quase mil páginas. Não estou lamentando. Sei que voltarei a ser quem eu era no quesito leitura.

Não parei de ler. Impossível uma coisa dessas. Eu já disse aqui que faz tempo que abri mão de programações ambiciosas. Antes eu era capaz de dizer quais livros seriam lidos nos próximos seis meses. Havia um ou outro desvio de percurso, mas eu sabia manter a linha. De uns anos pra cá, a programação se tornou mais modesta. Ela virou semanal. Antes da pandemia, eu era capaz de, no domingo, separar os livros da semana. Agora esse método também foi abolido.

De duas semanas para cá, eu acordo e não faço a menor ideia do que vou ler. Gasto um bom tempo separando uns livros. Formo montinhos perto do sofá, na mesa do escritório, ao lado da cama. A Patrícia, com razão, tem vontade de me trucidar.

Estou escrevendo este texto no escritório. Eu tiro os olhos da tela do computador e vejo uns vinte livros perto da impressora. Eles estão ali desde segunda-feira desta semana. Para vocês terem uma ideia do drama, a pilhinha apresenta: sátira israelense, romance policial grego, Carl Sagan, antologia de literatura policial nos EUA, sátira inglesa, jornalismo chinês, jornalismo alemão da década de 20 do século passado, Tom Wolfe. Tem mais, só que não quero aborrecer com listinhas quem acompanha esta coluna.

Livros excelentes. Todos eles excelentes. Mas estão em compasso de espera. Cresce a angústia, mas aí eu tenho um remédio infalível. Eu diria dois remédios infalíveis: Georges Simenon e Raymond Chandler. Melhor dizendo: Maigret e Marlowe. São os protagonistas dos romances dos dois gigantes da literatura. Acompanhar suas peripécias dá uma baixada na bola.

Eu iria além. Maigret e Marlowe são exemplos de caráter. Não quero que isto aqui seja fonte de equívocos, e por isso esclareço: não esperem encontrar nesses protagonistas homens puros, inocentes e piedosos. Eles são malandros, ardilosos, observadores, encrenqueiros, ranzinzas, lúcidos. Encaram a humanidade com desconfiança. Bufam por causa do calor. Quando confrontados, acusam o golpe. Têm lá suas fragilidades. Cometem equívocos. São rabugentos. A lista de defeitos é grande.

Com tudo isso, eles vão em frente. É uma dádiva ter contato com personagens capazes de tirar sarro de alguém ou de si mesmo nos momentos mais agudos. Para mim, Maigret e Marlowe sempre serão, acima de tudo, mestres do humor. Não o humor fácil de quem está no aconchego da alcova; mas o humor corrosivo de quem entendeu como a vida funciona. Maigret e Marlowe mostram que ainda temos salvação.