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Prazer sem medo

19 de Fevereiro de 2021 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

A Patrícia e eu estávamos conversando sobre as nossas diferenças no campo da leitura. Concordamos com o óbvio: ela é muito mais disciplinada do que eu. Ela se interessa por um assunto e vai a fundo. Torna-se uma especialista. Eu, não. Fico borboleteando. Ela é vertical, eu sou horizontal. Quem está certo? Ninguém. Cada um toca a vida do jeito que achar melhor.

Falo da conversa com a Patrícia porque faz tempo que venho pensando na maneira como me relaciono com os livros que leio. Faz tempo, e vocês sabem disso: já falei do assunto por aqui. Fiquem calmos. Não estou com preguiça e não vou maquiar colunas anteriores.

Faz muitos anos que abandonei os escrúpulos de bom moço na hora de ler. O que eu quero dizer com “escrúpulos de bom moço”? Alma de caxias, de CDF. Jeito de tocar a vida que nem a do carinha que só faz as coisas porque o professor vai dar a estrelinha de melhor aluno da sala. Não é de um dia pro outro que essas mudanças acontecem.

Minha relação mais forte com os livros se deu na adolescência. Minha fome não tinha fim. Li muita coisa maravilhosa. Li coisas que não tinham a ver comigo. Hoje eu percebo isso com facilidade. Naquela época não era fácil perceber. Eu me arrastava por centenas de páginas de um livro aborrecido porque um crítico X dizia que o romance em questão era fundamental. Meio masoquista, pensava que a culpa era minha se eu não achava aquelas páginas sensacionais.

Isso durou um bom tempo. Talvez tenha sido necessário. Sei lá, necessário para fortalecer a musculatura intelectual. Mas chega a hora fundamental em que a gente chuta a porta com gosto. Na prática, passou a ser assim: se o santo não bate, bau-bau, livro. Passei a fazer isso sem culpa no cartório.

O que aconteceu comigo não é comum. Normalmente o prazer impera nos primeiros anos e a responsabilidade toma conta da maturidade. Muita gente acha que a vida é assim mesmo, incluindo as leituras. Só fui ler Dumas e Conan Doyle depois de velho. Depois de ter passado por livros sisudos. Depois de torcer o nariz para o menor traço de entretenimento. Eu era chato pra caramba.

Na minha fase de leitor boboca, eu ridicularizava quem dizia que um romance deveria ser uma boa companhia. Eu ridicularizava quem dizia ler um romance porque queria conhecer outros países. Eu ridicularizava quem dizia ler um romance porque queria fazer o tempo passar de uma forma menos sufocante. Eu ridicularizava justamente aquilo que, hoje, me faz encarar um romance.

Um lembrete crucial: muitos dos chamados romances “clássicos” são boas companhias e nos fazem atravessar garbosamente as horas. “Dom Quixote”, “Os Miseráveis”, “Guerra e Paz”, “O Conde de Monte Cristo”, “Os Maias”, “David Copperfield”, “O Falcão Maltês”, “Crime e Castigo”. Companhias maravilhosas.

Agora vocês entendem porque sempre faço aqui a apologia dos romances policiais. Alguns são bem ruinzinhos, tal qual muita coisa na vida. Mas os bons fazem a gente feliz. Não é assim em vários departamentos? A vida é curta, dura e repleta de gente besta. Tem que reconhecer isso pra valorizar melhor um livro bacana.

Se vocês concordam comigo, leiam “O Quinteto de Buenos Aires”, de Manuel Vásquez Montálban. Tem enredo policial de primeira linha. Tem humor. Tem tragédia. Tem análise cortante da Argentina dos anos 90. Tem gastronomia exuberante. E tem Pepe Carvalho, membro importante da família dos detetives literários.