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Passar o tempo

16 de Abril de 2021 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Há quem diga que o romance é o melhor gênero literário para retratar as complexidades de uma sociedade. Um enredo de centenas de páginas seria o ideal para dar conta do turbilhão humano. É uma convicção influenciada pelo século 19.

Até dá para entender. O século 19 foi, para muitos, o período de ouro do romance. Eis alguns nomes: Balzac, Stendhal, Flaubert, Dumas, Zola, Dickens, Jane Austen, Tolstói, Dostoiévski, Turguêniev, Eça de Queirós, Machado de Assis, Herman Melville. Não é exagero dizer que é possível passar a vida lendo apenas os romances do século 19. Apenas entre aspas, claro.

Um ponto importante a ser discutido: a arte é o terreno para se compreender a sociedade? Claro que é. Não vou perder meu tempo tentando explicar. Sei de muita gente que acha que a literatura serve para passarmos o tempo de maneira agradável. Não discordo. Mas não custa nada entender o que seria a “maneira agradável”.

Acho que cada um explica do seu jeito. Depende do freguês e depende da fase do freguês. Hoje estou com 43 anos. Como vejo o passar o tempo de “maneira agradável” hoje, em termos de literatura? Não quero dar uma resposta longa. Basta dizer que é bem diferente do que era há dez anos.

Há dez anos, eu relia maniacamente os romances consagrados. Não para me exibir. Não era por questões profissionais. Eu simplesmente precisava daqueles textos naquele momento. Hoje é diferente.

Já disse aqui que venho lendo com mais afinco romances policiais. No momento, é a minha “maneira agradável” de passar o tempo. Pode ser que eu mude, mas acho, hoje, que um bom romance policial vai muito além do enredo trepidante. Tem todo o lance, na maioria deles, de acompanhar, roendo as unhas, os desdobramentos da história. É bom que essa fome, materializada na pergunta “e agora?”, esteja presente. Mas não pode ser só isso.

Muitos dos romances policiais que tenho lido são lentes maravilhosas para entender uma época. Dashiell Hammett e Raymond Chandler não me deixam mentir. Com Hammett, entendemos como a banda tocava nos EUA das décadas de 20 e 30. Vale a pena encarar os contos e romances durões que mostram que o lobo é o lobo do homem. Nas páginas de Hammett, os EUA estão apodrecendo. Chandler ambienta suas histórias alguns anos depois. Ele é menos abrangente na hora de retratar as camadas sociais. Ele prefere concentrar-se no mundo dos ricos de Los Angeles. Cada coisa que a gente encontra ali!

Dia desses, comprei “O Ano-Novo de Montalbano”, do italiano Andrea Camilleri, um dos craques da literatura policial. Já falei do Andrea Camilleri por aqui, e não foi uma vez só. É que somos fã dele aqui em casa. A Patrícia devora com deleite todas as histórias protagonizadas pelo comissário Montalbano. Eu também. Na maior parte das vezes, Montalbano aparece em romances. Digo mais: o Camilleri romancista é melhor que o Camilleri contista. Isso é normal. O Graciliano Ramos romancista é melhor que o Graciliano Ramos contista.

Certo, tudo bem, mas “O Ano-Novo de Montalbano” me leva de volta ao primeiro parágrafo do texto de hoje. Relembrando: conto ou romance como gênero literário mais adequado para analisar a sociedade. Com Camilleri, mergulhamos no mundo da máfia, da imprensa, da gastronomia, do judiciário, dos ricos, dos pobres, dos grandes traficantes, do ladrão de galinha. Saibam que “O Ano-Novo de Montalbano”, reunião de contos, é um excelente mosaico da sociedade que Camilleri se propõe a esquadrinhar. Cada conto ilumina um ângulo. Tchékhov também fazia isso.

E assim vou passando o tempo: lendo histórias policiais escritas por gente de vários lugares e de várias épocas. Recebo, assim, a minha ração diária de aventura. De quebra, ganho aulas de lucidez. A humanidade é vidrada em sangue. Sempre será.