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O tagarela (conto - final)

31 de Julho de 2020 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Preciso começar com algo importante. Nem sempre as pessoas entendem como é a dinâmica do esporte profissional. Talvez alguns entre vocês não façam a menor ideia das dificuldades que um sujeito que é jogador de futebol encontra nos mais diversos estágios da sua vida.

Agora que estou dizendo isso, reparei que tenho um quê de professor. Quando converso, parto da premissa de que o didatismo é o ponto mais importante do meu relato. Se é assim, vou contar a minha história supondo que vocês ignoram completamente os meandros do esporte.

Antes de entrar na história propriamente dita, mais um alerta: tento casar alguns comentários com os fatos que descrevo. Acho que esses comentários elucidam muita coisa. Sem eles, o que conto fica frio. Vocês notaram que valorizo a maneira de me comunicar. Vai ver que isso explica o porquê de tanta gente me evitar. Nem todo mundo está acostumado com maneiras mais refinadas de se narrar.

Se vocês permitem mais um comentário antes de entrarmos na história da minha carreira de jogador de futebol, eu gostaria de dizer o seguinte: uma das minhas maiores preocupações atuais tem a ver com as narrativas tóxicas que circulam por aí. É um tema complicado, mas eu vou resumir. Encaro as histórias como alimentos. Assim como os alimentos, as histórias podem ser nutritivas ou porcarias. Tolstói é refeição das mais dignas. A porcariada da televisão é fast food. Nem vou comentar a respeito da internet.

Estou vendo a cara de espanto de vocês. Estou quebrando expectativas. Juro que entendo. Imagine só: o cara resolve contar sua história de jogador de futebol e começa a falar de aspectos da narrativa. Posso dar um conselho? Cuidado com os clichês. Se não tomarmos cuidados, somos soterrados pelos clichês. Ainda mais hoje. Um desses clichês aponta que o jogador de futebol mal sabe ler e escrever. Não que os clichês sejam completos absurdos. O problema é que eles generalizam. De fato, muitos jogadores de futebol têm dificuldades com leitura e escrita. Só não dá para falar que todos são assim. Eu, pelo menos, nunca fui. E conheço outros colegas de profissão que liam bastante.

Vejam só que interessante. O que acabei de dizer me deu uma ideia. Eu tinha pensado em contar a minha história de forma linear. Aí vocês pensam, certeza: “Por que ele não engata a primeira marcha e conta de uma vez por todas a maldita história, em vez de ficar penteando a boneca?”. Aproveitando o embalo: o que estou fazendo atende pelo nome de “metalinguagem”. Lá vem a minha veia de professor aparecendo forte novamente. Estou fazendo metalinguagem porque estou contando uma história e comentando sobre o processo de contá-la ao mesmo tempo.

Engraçado como o contexto é tudo. Eu iria além. O contexto e a fama do sujeito. Se é o Machado de Assis chafurdando na metalinguagem em seus romances, o pessoal bate palmas e sai dizendo por aí que o cara é genial. Agora, se é um cara contando uma história numa padaria e recorrendo ao recurso da metalinguagem, o pessoal tem vontade de picar a mula. A vida não é fácil.

Mas eu estava falando dos clichês que atormentam os jogadores de futebol. Acho que vocês estão acompanhando o raciocínio, não? Eu disse que as pessoas tendem a achar que todos os jogadores de futebol mal sabem ler e escrever. Estou retomando essa parte porque ela é importante. É que eu disse que o clichê que atormenta jogadores de futebol fez com que eu decidisse romper com a linearidade do relato da minha carreira.

O que acabei de fazer é a boa e velha retomada. Curioso como as pessoas são desleixadas nesse quesito. Elas saem falando e escrevendo por aí ignorando que nem sempre ouvintes e leitores estão prestando a máxima atenção. Eu sei que é a minha faceta de professor aparecendo novamente. Sempre gostei de narradores que conduzem ouvintes e leitores dessa forma.

Então, em vez de começar pelos primeiros testes que fiz num clube de futebol, vou partir de um programa de televisão que participei no início dos anos 90. Naquela época, eu era considerado um jogador promissor. Era um domingo à noite. Tínhamos jogado na tarde do mesmo dia. Fazia frio na hora do jogo. Fazia mais frio ainda à noite. Era um programa na TV Gazeta. Até então, eu não tinha dado muitas entrevistas. Eu era muito mais conhecido pela performance em campo. A participação naquele programa de televisão seria uma ótima chance de mostrar quem eu era. Não sei se vocês sabem, mas um estúdio...

(Nosso protagonista, nesse momento, sai do transe narrativo e percebe que, pela milésima vez, foi abandonado por seus ouvintes.)

Fim do conto