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O milagre do futebol

07 de Fevereiro de 2020 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Estou acima do peso. Faz tempo que não pratico esportes. Ando pra cima e pra baixo com livros. Gosto de literatura. Por conta dessas coisas, as pessoas acham que futebol não é a minha praia. Precisamos parar de julgar o livro pela capa. O futebol é algo fundamental na minha vida. Eu não preciso caminhar por aí vestido de atleta.

Conheço gente que, ao mesmo tempo, ama ver futebol e odeia jogar futebol. Sem problemas. Verde é a árvore da vida. Passei muitos anos jogando futebol e vendo futebol. Eu era passional nas duas atividades.

Na infância e na juventude, eu batia uma bolinha nas mais diversas circunstâncias. Hora do intervalo, depois das aulas, antes das aulas, na educação física, todas as tardes das férias, em noites avançadas, futebol de salão, futebol society, futebol de campo, no clube, em ginásios em bairros afastados. Mas um dia eu torci feio o joelho e tive de fazer duas cirurgias. Parei com a brincadeira.

Dizem que ex-fumantes sonham que estão fumando. Quem sou eu para duvidar? Ainda não larguei o cigarro, mas faz tempo que não chuto uma bola. São frequentes os sonhos em que apareço jogando. O mundo dos sonhos pode ser um belo refúgio.

Aprendi muito jogando. Nunca me destaquei. Eu era um esforçado. Ser um peladeiro fominha me ensinou a participar de uma partida sem passar vergonha. Nunca fui de driblar. Drible é dom. Ou você tem ou você não tem.

Eu me dava melhor nos passes e no posicionamento. Sempre acreditei que a inteligência deve caminhar de mãos dadas com a performance esportiva. Dar bons passes era mais do que suficiente para mim. Eu deixava a poesia para os mais talentosos. Jogando, eu aprendi que um bom passe pode ter o seu encanto.

A maneira como eu jogava tinha um grande peso na hora de venerar alguns jogadores profissionais. Um Neymar nunca me entusiasmou. Minha devoção ia para um Paulo Henrique Ganso. Ou para um Palhinha. Vocês podem apresentar estatísticas e análises refinadas, mas nunca vão tirar do meu coração a crença de que o Palhinha foi um milagre dos nossos campos.

A devoção ao Palhinha se consolidou em 1993. Naquele ano o São Paulo tinha um timaço. Em 1992 tinha sido campeão da Libertadores. A grande estrela do time era o Raí. O Raí também era sensacional, mas não como o Palhinha.

É que o Raí tinha toda a estampa de atleta de alto rendimento. Já o Palhinha era miúdo, magrelo e cabeçudo. Ele tinha que se virar com a inteligência, com a esperteza, com a visão aguda do que estava acontecendo em campo. A arte precisa de restrições para ser executada. Sempre acreditei nisso.

Em 1993, meu pai e o meu tio nos levaram ao Morumbi para ver o São Paulo enfrentar o Flamengo por uma partida eliminatória da Libertadores. Ficamos na numerada, bem atrás do gol do Gilmar, goleiro do Flamengo, no primeiro tempo. Estávamos vendo um jogaço. Júnior, quase aos quarenta anos, era o cérebro do Flamengo.

Lá pelas tantas, o Palhinha recebe uma bola na intermediária. Ao mesmo tempo, o Muller, perto da área do Flamengo, corria em diagonal. Um jogador comum dominaria a bola e levantaria a cabeça. Ele mataria a jogada. Só que era o Palhinha, e ele nem chegou a dominar a bola. Tocou sutilmente, bola rasteirinha, para o companheiro que avançava em diagonal. Muller recebeu a bola, deu uma entortada no Gilmar e abriu o placar para o São Paulo.

Sei que parece maluquice, mas ali no Morumbi parece que eu vi aquela maravilha em câmera lenta. Nos dias seguintes, vi o gol umas duzentas vezes nos programas esportivos. Tive a certeza de que foi o gol mais espetacular de todos os tempos. Claro que essa história de gol mais espetacular é absurdamente subjetiva. Cada um tem o seu gol mais espetacular de todos os tempos.

Já se passaram quase 27 anos desde aquele gol. Passei um tempão ser revisitar aquela maravilha protagonizada pelo Palhinha. Meu coração guardava aquilo com amor. Pouco tempo atrás, resolvi rever o gol do Muller no Youtube. Eu queria ter certeza de que aquele lance era mesmo lindo. Tive a pachorra de rever a partida inteira. No momento do gol, o entusiasmo voltou. Eu fui, verdadeiramente, a testemunha de um milagre em 1993.