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O buraco e a escada

01 de Maio de 2020 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Nesta semana, trabalhei com uma proposta de redação interessante em algumas salas. Usei como referência a prova da Santa Casa de 2018. O tema fundamental: “Os desafios do jornalismo na era da pós-verdade”. O formato da prova é o tradicional: alguns textos de apoio servindo de referência aos alunos. Normalmente, os textos trazem dados estatísticos e posicionamentos. A partir da leitura desse material, a moçada precisa desenvolver uma dissertação que deixe evidente uma opinião muito bem fundamentada.

Você que está lendo esta coluna pode achar que adolescentes não conseguem lidar com um tema de tamanha complexidade. Se achou, está enganado. As discussões -- presenciais ou virtuais -- só reforçam a minha crença de que a próxima geração é bem melhor que a minha. As maiores aberrações que tenho ouvido por aí têm vindo de gente considerada madura e respeitável. Mas não é o caso de atirar pedras neste momento. Voltemos à redação trabalhada com os alunos.

Na aula, definimos algumas estratégias. Por exemplo, impossível escrever uma argumentação consistente sem explicar claramente o que é “pós-verdade” e o que é “jornalismo”. No primeiro texto da coletânea, havia uma definição do Dicionário Oxford para a “pós-verdade”: “algo que denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência para definir a opinião pública do que o apelo à emoção ou às crenças pessoais”. Não é a salvação da lavoura, mas pode ajudar.

Oxford menciona alguns pontos fundamentais: “fatos”, “emoção” e “crenças pessoais”. Certamente você já ouviu falar em pleonasmo. Pleonasmo é redundância. A redundância pode ser positiva ou negativa. Nem todo pleonasmo é vicioso. A redundância pode ser poética ou retórica. Dei essa volta toda para dizer que a expressão “baseado em fatos reais” é pleonástica e é viciosa. Se é fato, é real. A “pós-verdade”, levada às últimas consequências, diz que não há fatos. Tudo é passível de ser interpretado. Acha que estou exagerando? Tente conversar com alguém que afirma que as vacinas causam autismo. Desnecessário dizer o quanto “emoção” e “crenças pessoais” têm tomado conta dos debates.

Na redação da Santa Casa, o cenário da “pós-verdade” mostra-se terrível. O abismo está logo ali quando fatos e convicções são colocados no mesmo balaio. Acho que não exagero quando digo que a atual pandemia é o laboratório crucial para avaliarmos os estragos dessa mistura tóxica. Penso nas pessoas que sucumbiram e que sucumbirão por conta desse casamento da leviandade com a burrice.

Depois do cenário da “pós-verdade”, passa-se ao jornalismo. Importante, aqui, trabalhar em duas direções: como tem sido o jornalismo hoje e quais são as práticas ideais de jornalismo. Claro que abordar como o jornalismo vem se comportando hoje é um exercício de generalização. Há casos notáveis e há casos deploráveis. Em muitas situações, o jornalismo, para sobreviver aos estímulos da internet, decidiu dar as mãos ao espetáculo. Tudo tem que ser bombástico e atraente. Do contrário, o leitor ou o espectador perdem o interesse rapidinho. A opinião ardente torna-se indispensável. Sacrifica-se a ponderação. Sacrifica-se o jornalismo investigativo.

Pense comigo. Não é muito mais fácil sair atirando para todos os lados? É só se agarrar a um fiapo de acontecimento e temperar tudo com muita pimenta. É o caminho para garantir curtidas e compartilhamentos, fãs e adversários. E é o caminho para termos uma gigantesca rinha de galos. É muito mais difícil praticar o jornalismo investigativo clássico. Há que se ter paciência, honestidade e compromisso com a verdade. A apuração nada tem de glamourosa. Os jornalistas envolvidos devem ter em si a mistura de destemor e prudência. Destemor na hora de denunciar poderosos envolvidos em falcatruas. Prudência para não levantar falso testemunho. Os jornalistas investigativos também devem estar atentos à clareza da linguagem. O resultado do seu trabalho deve atingir um grande público.

Tudo isso -- e muito mais -- foi discutido com os alunos nesta semana. Saí dividido entre a tristeza e a esperança. Tristeza ao constatar que cavamos um buraco dos mais fundos e que vai demorar um tempo danado para sairmos dele. Esperança ao reconhecer em meus alunos as pessoas que nos darão a escada para sairmos do buraco fundo.