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Instável

11 de Dezembro de 2020 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Aconteceu uma coisa curiosa comigo na semana passada. Foi depois de ter lido “Do que eu falo quando eu falo de corrida”, de Haruki Murakami. Um bom livro de várias facetas. Uma delas é a apologia da tenacidade. Murakami é escritor e maratonista. Provas e treinos mostram que a vida de corredor não é nada fácil.

Espera-se que, depois de uma leitura dessas, a pessoa saia por aí erguendo catedrais e empreendendo loucamente. Talvez isso role com você. Comigo foi o oposto. Os dias que seguiram, no quesito “leitura”, foram instáveis, volúveis. Vários livros iniciados e abandonados nas primeiras páginas.

Não é a primeira vez que acontece. É saudável que seja assim. Faz tempo que deixei de lado qualquer sentimento mais agudo de culpa ao abandonar um livro. Antes eu ficava remoendo com fervor a parada. Vinha a voz amarga da consciência apontando que eu era um péssimo leitor. Ainda bem que essas bizarrices ficaram lá pra trás. Até que envelhecer tem seu lado bom.

Beleza. A coisa da semana passada já tinha acontecido noutras primaveras. Qual é o drama? O drama é a intensidade. Nunca tantos livros largados e tantos dias correndo. Tentei de tudo um pouco. Foi engraçado.

Logo depois do livro do Murakami, engatei “Muhammad Ali: uma vida”, escrita por Jonathan Eig. Gostei pra caramba das primeiras páginas. Eig sabe manter as cordas tensas. No dia seguinte, fui enroscando. Zero de culpa da história. Achei melhor não insistir. Prometo voltar ao Muhammad Ali.

Tentei algo mais levezinho. Fui pra autobiografia do Nelson Motta. Empolgação nas primeiras páginas. Legal o esquema de falar de si mesmo na terceira pessoa. Agora, vai. Vai nada. Zero de culpa do Nelson Motta. Achei melhor não insistir. Prometo voltar ao Nelson Motta.

Arrisquei um tratamento de choque: “Sem saída”, romance da genial Patricia Highsmith. As tretas que aparecem nos seus contos e romances nunca são de pouca monta. “Sem saída” é uma belezura, e dá pra perceber isso logo de cara. Fui dormir feliz, na expectativa de seguir com a leitura do romance macabro. O dia seguinte seria de foco, fé e determinação. Acordei todo pimpão. Catei meu Kindle. Agora, vai. Vai nada. Eu ia lendo que nem um zumbi. Tinha que voltar pro início do capítulo pra entender o que estava acontecendo com as personagens. Achei melhor não insistir. Prometo voltar à Patricia Highsmith.

Tentei pensar friamente. Será culpa do suporte? É que a gente tem mania de encontrar padrão nas coisas. Os livros abandonados estavam no Kindle. Vai ver era uma revolta camuflada contra o livro eletrônico. Recorri ao livro impresso.

Escolhi “A noite da arma”, de David Carr. É a autobiografia tétrica de um sujeito que abandonou as drogas. Carr escreve bem pra caramba. Glória ao bom e velho livro impresso, certo? Uma pinoia. Fui emperrando. Que dó. Prometo voltar ao David Carr.

Tentei pensar friamente de novo. E de novo a mania de encontrar padrão nas coisas. Os livros abandonados contavam histórias mais longas. Glória ao bom e velho conto, certo? Quem escolher? Juntei a fome com a vontade comer. Separei alguns livros do Sergio Sant’anna. Fazia um tempão que eu queria reler um dos meus autores prediletos. Coloquei “Páginas sem glória” em primeiro lugar na fila. Um conto breve e duas noveletas. Li tudo. Ufa. O livro é a prova de que os contos de Sergio Sant’anna são dádivas.

Dádivas escritas por um sujeito em plena forma intelectual. Ainda teríamos anos dessas belezuras aparecendo. Mas Sergio Sant’anna morreu neste ano, por conta da Covid. A tragédia brasileira não tem fim.