Evolução?

Por

Nelson Fonseca Neto - nelsonfonsecanetoletraviva@gmail.com

Já disse aqui que alguns comerciais que passam no YouTube têm me irritado. Eles me irritam porque dão a entender que todos estão vivendo uma quarentena num apartamento da Vila Madalena. Qualquer com mais de dois neurônios sabe que a banda está longe de tocar assim por aqui. Muita gente não pode ser dar ao luxo do isolamento. Muita gente não quer fazer o isolamento. Não esperem que a curva da Covid-19 tenha um bom aspecto a partir de um passe de mágica.

Eita, já capotei na curva logo de cara. Minha ideia não era arreganhar os dentes para o cenário atual. Já fiz isso várias vezes nas últimas semanas. Certamente quem acompanha esta coluna compreendeu meu ponto de vista. A repetição é uma das artimanhas da retórica, mas não abusemos.

Eu queria tratar dos comerciais que pululam no YouTube por um motivo simples: eles mostram personagens que enfrentam a pandemia tentando aprender coisas novas. Tem o carinha que aperfeiçoa o talento gastronômico. Tem a moça que mergulha fundo no estudo da língua alemã. Tem o casal que mexe radicalmente na decoração da casa. Tem o cara que fica viciado em lives. Enfim, gente que encara a quarentena como oportunidade. Os coachs deliram.

Já perguntaram para mim como venho tocando esses dias esquisitos. Importante dizer que sou dos privilegiados que conseguem fazer o isolamento social. Faz várias semanas que a Patrícia, o João Pedro e eu estamos isolados no nosso apartamento.

Várias das pessoas que nos conhecem sabem que vivemos no meio de livros. Ora, natural que elas achem que o volume da leitura aumentou nos últimos meses. Acho que não aumentou. Estamos na mesma. Seria loucura imaginar orgias literárias com um bebê, que aprendeu a andar há algumas semanas, zanzando pelos cômodos. É uma delícia. É uma farra. E demanda atenção constante. As leituras ficam para quando a fera estiver dormindo.

Ora, se tocamos o barco assim por aqui, impossível imaginar que faríamos parte dos comerciais do YouTube. Não descobri talentos adormecidos em mim. Continuo desastrado. O cabelo cresceu pra caramba. A barba precisa ser aparada. Nada de novo no front.

Melhor dizendo: fiquei mais detalhista nas avaliações dos desenhinhos que o João Pedro vê. Não esperem que eu chore sangue por aqui porque o nenê vê desenhos na televisão. A gente cuida bem dele. Moramos num apartamento. Estamos em quarentena. Não tem hortinha nem bichinhos pitorescos por aqui. O João Pedro já mostra uma inclinação pelos livros. Ele adora o das figuras geométricas, o das cores e o dos bichos da fazenda. Ele queima muitas calorias correndo pela sala, pelos quartos e pela cozinha. Tudo isso para dizer que não demonizamos os desenhinhos.

A Patrícia e eu já passamos dos 40. Dependemos dos desenhos que passavam na TV aberta e das fitas das locadoras. A criançada de hoje tem, ao menos, dez canais na TV a cabo. Sem contar a maravilha que é o YouTube. Quem diz que os desenhos são todos iguais não tem a menor noção de como as coisas funcionam. Tem desenho que deixa o João Pedro entusiasmado. Tem desenho que recebe da fera apenas um olhar de desdém.

Pode parecer absurdo, mas esta coluna tem um quê de utilidade pública. Assim, gostaria de dividir com vocês desenhos amados e menosprezados pelo João Pedro. A vida é feita de indicações. Desenhos amados: “Pequena Lola”; “O mundo de Louie”; “As aventuras de Oliver”, “Tully”; um de dois pinguins cujo nome eu ignoro; “Zoe quer ser”; “Uli”; “Big bugs band”; “Senhora pureza”. Desenhos menosprezados: um que mostra uma girafa que sempre tenta ajudar uns amigos chatos; um que mostra uns carrinhos fofoqueiros e birrentos; um assustador que mostram umas formigas marchando.

Não sairei mais magro da quarentena. Diminuí drasticamente o cigarro, o que é uma conquista. Mas o que importa é que a Patrícia e eu circulamos pelo apartamento cantando que nem dois palhaços. Isso até quando o João Pedro está dormindo. Eita.