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Escravos da memória

09 de Agosto de 2019 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

A memória afetiva é implacável. Ela é a lente que distorce enormemente. O que vivemos na infância e na adolescência ganha ares de paraíso. Ah, as brincadeiras na rua eram melhores. Ah, a gente vivia sem medo de bandido. Ah, a televisão passava programas mais legais. E por aí vai. E não tem fim.

Eu escrevo essas coisas sem querer me colocar numa posição superior. Eu também sou refém da memória afetiva. Tenho verdadeiros tesouros guardados na cabeça. Interessante como muitos deles não estão relacionados a eventos cruciais. São besteiras que surgem com impressionante grau de nitidez. Certamente vocês já passaram por isso. É aquela cena banalíssima que sempre volta. Engraçado que muitas situações decisivas aparecem borradas. Quer dizer, quando aparecem.

Por acreditar no peso da memória afetiva na vida de um sujeito, sou obrigado a reconhecer que muitos dos meus valores foram moldados pelos anos 80 e pelo início dos anos 90. Eu poderia ficar horas aqui elencando os exemplos. Vale a pena falar de um deles: inflação. Eu morro de medo de inflação. É que eu lembro muito bem os anos do Sarney. É claro que o pânico reverbera hoje, quando constato que os livros deram um salto gigante em seus preços. Imagino aquela desgraça toda voltando.

Esses dias mesmo, eu estava pensando: o que eu faria da vida se não fosse professor? As primeiras respostas foram óbvias: jornalista, antropólogo, sociólogo. São carreiras afins. Mas não foram respostas que deram conta do recado. Faltava alguma coisa. Foi aí que me dei conta. Se eu não fosse professor, eu seria crítico de televisão. Essa vocação tem muito a ver com o papel da televisão na vida das pessoas nos anos 80 e no início dos anos 90.

Hoje a TV a cabo oferece centenas de canais. No serviço que assinamos, há mais de dez canais com programação voltada a crianças. 24 horas por dia. Nada daquele chuvisco que aparecia perto da meia-noite e que era o terror dos boêmios. Nem me aprofundo nas opções da HBO, Netflix e YouTube. Na minha infância, controle remoto era luxo e os canais à disposição não chegavam a dez.

Não tínhamos muitas opções, e isso explica o poder de alguns programas. Fomos obrigados a ver dezenas de vezes na Sessão da Tarde, ao longo de poucos anos, filmes como “Curtindo a vida adoidado”, “Warriors”, “Um príncipe em Nova York”, “Trocando as bolas” etc. Eram obras-primas do humor. Ninguém me tira da cabeça que Eddie Murphy é um dos grandes gênios do século XX.

À noite, depois da novela das oito, rolava outro filme, normalmente mais sério, mais voltado aos adultos responsáveis e cumpridores dos seus deveres. Dessa leva, o mais marcante foi “Um dia de fúria”, protagonizado por Michael Douglas. Trata-se de um dia na vida de um sujeito de classe média, que usava gravata e tinha o cabelo cortado rente. Ele precisa passar por uma série de situações de um dia comum de trabalho. Tem de lidar com o calor, com o congestionamento, com a grosseria, com a estupidez, com a falta de noção do mundo ao seu redor. O barato do filme é que o Michael Douglas, meio pacato no início, fica meio biruta, tocando o terror na hora de lidar com situações irritantes. É um filme bem triste. E revelador.

Que fique bem claro: no filme, Michael Douglas é um sujeito perigoso. Não dá para ele sair por aí fazendo justiça com as próprias mãos. Só que, em algumas situações, a gente simpatiza com ele. É que o mundo não é lá muito belo. Ele é barulhento. Cheira mal. É repleto de gente intrometida. E certamente vocês já passaram por dias nada promissores, em que tudo dá errado. Começa com o copo que cai misteriosamente de nossas mãos logo de manhãzinha. Aí, na garagem, você descobre que a bateria do seu carro arriou misteriosamente. Aí, você chega ao trabalho e descobre que esqueceu em casa um material importante. Aí, você volta correndo e toma uma fechada de um cara que dirige e digita mensagens no celular ao mesmo tempo. E você vai passando por uma situação dessas por hora ao longo do seu glorioso dia.

Quem não cresceu vendo “Um dia de fúria”, talvez recite um mantra ou encontre um aplicativo de relaxamento. Quem é refém dos anos 80 e do início dos anos 90 pensará: até que o Michael Douglas tinha razão.