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Defesa do romance

12 de Julho de 2019 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Não tem como escapar: somos consumidores vorazes de narrativas. Sempre fomos assim. Sempre seremos assim.

Claro que o cenário foi mudando ao longo dos séculos. É interessante olharmos para a segunda metade do século XIX. Foi o período de ouro do romance. Importante lembrar que o romance é uma narrativa de maior fôlego e que não precisa necessariamente priorizar o amor. Se bem que, se fizermos um balanço, o amor aparece regularmente nas grandes histórias. Assim como a morte e a vingança. São temas cruciais.

Mas voltemos ao século XIX. Não havia cinema, rádio, televisão, internet, Netflix e HBO. O consumo de histórias se dava a partir de óperas, peças de teatro, livros, jornais e “causos” que circulavam oralmente. De todos esses formatos, o romance gozava de maior prestígio. Dickens, Zola e Tolstói, por exemplo, eram celebridades. Seus romances eram devorados e amplamente discutidos. “Oliver Twist”, de Dickens, rendeu debates no parlamento inglês a respeito das condições horrendas vividas por crianças órfãs.

Naqueles tempos, o romancista precisava ser ambicioso. Em muitos casos, a missão era clara: colocar em romances gorduchos um pedaço considerável da sociedade. Era o artista bancando o malabarista, equilibrando vários pratos ao mesmo tempo. Um belíssimo exemplo dessa ambição artística pode ser encontrado em Balzac. A “Comédia humana”, conjunto enorme de romances e contos, é a radiografia definitiva da sociedade francesa. Ricos e pobres são protagonistas. Poderosos e anônimos apresentam suas fragilidades. Até hoje ficamos espantados com o tamanho da empreitada.

Conforme o século XX foi avançando, surgiram questionamentos a esse enciclopedismo literário. O romance precisou ser reformado. Saiu a visão abrangente e entrou o individualismo. Em vez de uma galeria vasta de personagens, passamos a encontrar o protagonista revelado em várias camadas. Não é o caso de afirmar qual tendência é a melhor. Obras-primas podem ser encontradas nos dois lados. Virginia Woolf é exemplar da segunda linhagem.

Se essas mudanças ocorreram nas primeiras décadas do século XX, imaginem o cenário do início do século XXI. O que mais ouvimos por aí é que o mundo está cada dia mais complexo. Apontam que a internet é a grande responsável por isso. Navegar por alguns sites ao longo de uma hora mostra que é tarefa inglória encontrar fios condutores. Tudo ficou fragmentado. São milhões de vozes gritando seus pontos de vista. Chega a atordoar.

Assim, vale a pena pensar em romance abrangente em 2019? Antes de responder à pergunta: algumas das melhores séries da Netflix e da HBO herdaram a amplitude da segunda metade do século XIX. Pensem em “Mad Men” e na “Família Soprano”. Quer dizer que a soma de mundo fragmentado com as séries de televisão traz como resultado a morte do romance? Ainda bem que podemos responder: não! O romance respira e ainda é fundamental.

Impossível mencionar todos os exemplos de grandes narrativas literárias que surgiram nas últimas décadas. De todas elas, uma precisa ser destacada: “Tabloide americano”, de James Ellroy. São 700 páginas que cobrem aproximadamente quatro anos da história dos EUA. Os anos em questão são cruciais: final dos anos 50 até o assassinato de John F. Kennedy em Dallas. A prosa de Ellroy é acelerada e crua. As frases são telegráficas. Raras vezes encontramos adjetivos e advérbios. As personagens da história formam uma galeria que mistura documento histórico com ficção. Esqueçam as cenas mais exibidas nos filmes da época. Nada de glamour e musiquinha inofensiva. O que Ellroy mostra é o submundo. É a máfia. É a maracutaia política. É a ganância sem limites. É o sangue jorrando. Chegamos ao fim do livro atordoados. Nossa visão ingênua é sepultada. Romance não é só distração. Os melhores casos servem para abrir os nossos olhos. “Crime e castigo”, de Dostoiévski, é uma historinha para lermos para os bebezinhos?

É a segunda vez que leio “Tabloide americano”. E a pergunta que fiz na primeira vez, ao terminar o livro, continua firme e forte: quando surgirá um Ellroy brasileiro? Matéria-prima não falta.