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Cuspe na testa

30 de Outubro de 2020 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Meu esporte predileto é queimar a língua. Também conhecido por “cuspir pra cima e cair na própria testa”. Significa que sou meio garganta. Vou falando as coisas sem medir as consequências. Faço pronunciamentos com verniz de categóricos. Tempos depois, tenho de jogar tudo no lixo, metaforicamente falando.

Essa minha sina rola nos mais diversos departamentos. Mencionarei os mais emblemáticos, a título de ilustração. Espero encontrar a dose certa. É que nesse lance de escrever toda semana, a gente corre o risco de ser meio cansativo. Eu ia dizer que existe uma “linha tênue” entre ser familiar e ser chato, mas a expressão “linha tênue” já deu o que tinha de dar. O mesmo se dá com “zona de conforto”.

Mas eu estava falando sobre os casos em que queimo a língua, em que cuspo pra cima e o negócio despenca na minha própria testa. Nas últimas semanas, o que está em alta na minha vida é o departamento de alimentação.

Os mais assíduos leitores desta coluna sabem que estou num processo de reeducação alimentar. É um jeito fino de dizer “vergonha na cara”. Desde quando comecei o esquema, dou um jeito de tocar no assunto com quem tenho a oportunidade de trocar algumas palavras. Nas aulas, nos momentos mais descontraídos, faço alguma graça envolvendo as calorias que venho consumindo. Já aconteceu de, numa conversa rápida, dessas bem de passagem mesmo, eu dar um jeito de falar da reeducação alimentar.

Olha, correndo o risco de soar hiperbólico e nojento ao mesmo tempo, digo: essa história de reeducação alimentar é um baita cuspe que caiu na minha testa. É difícil de acreditar, mas eu tinha orgulho de comer desregradamente. Eu dizia, sem dó, que veganos e demais preocupados com a alimentação eram chatos de elevadíssimo calibre. Eu fazia piadinhas. Eu inventava historinhas ridículas e ácidas. E mandava ver com afinco no sanduichão. A sobremesa cheia de creme arrematava a farra.

Agora eu preciso tomar cuidado para não ser justamente o que eu mais criticava. Eu preciso tomar cuidado para não ser o chato da comida. Vai ver que é uma veia meio messiânica que eu tenho. É a maldita mania de tagarelar sem ser chamado. É cacoete de professor. Estou na fase de querer mostrar que comer saudavelmente é o maior barato.

Eu preciso ser brecado. Reconheço sem ficar chateado. É por isso que eu peço aos mais chegados: quando eu desembestar a falar sobre legumes, favor levantar a mão. Não precisa ser algo espalhafatoso. Só levantar a mão. Aí eu mudo a conversa.

Outro departamento em que o cuspe escorre farto pela testa: livros. Acho chato pra caramba quando alguém vem indicando leituras sem que eu solicite. Eu nunca entrarei numa livraria e direi: “e aí, qual é a boa?”. Respeito quem faça assim. Nada contra, claro, quem indica uma obra quando solicitado. Reparem que “solicitar”, aqui, é o verbo fundamental.

Pois bem. E não é que uma parte das minhas atividades profissionais tem a ver com recomendação de livros? Às vezes faço isso por aqui. Já fiz mais. Tem gente que pergunta a razão de eu ter diminuído as indicações de leitura neste espaço. Juro que não sei dizer o porquê. Acho que o que ocorreu foi mais uma mudança de formato. Quase sempre menciono o que estou lendo. Ficou algo mais informal. Melhor assim.

Dizem que, na maioria das vezes, as pessoas vão ficando mais formais com o passar dos anos. Esse processo apareceria nas roupas, no vocabulário, no trato com o próximo, essas coisas. Talvez isso aconteça com vocês. Não que eu saia por aí imitando o Sergio Mallandro. A coisa toda é menos caricata. Venho tentando ser menos pomposo nos textos que escrevo. Abandonei a esperança de escrever preciosidades que esquadrinham argutamente obras-primas da literatura mundial. Deixo essa missão para os mais disciplinados. A parte que me cabe neste latifúndio é mais modesta. Meu negócio é trocar algumas ideias a respeito de livros bacanas.

Bom, é isso. Agora vou ao banheiro limpar a minha sempre úmida testa.