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Coach de verdade

27 de Dezembro de 2019 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Já disse umas duzentas vezes aqui que minha implicância com nossos tempos de abundância de coachs é imensa. O problema não está no aconselhamento. Faz parte do jogo tentar ajudar as pessoas queridas. Cada um exerce a função à sua maneira. Há os brandos e há os incisivos. Há momentos que pedem uma abordagem mais terna e há momentos em que a porta precisa ser chutada com mais força.

Somos, portanto, conselheiros e palpiteiros nesta vida bandida. Sendo assim, por que implico com os coachs? Primeira razão: tentam ganhar uma grana fingindo que são indispensáveis. Segunda razão: tendem a transformar cada centímetro de nossa vida em matéria passível de ser maniacamente organizada. Terceira razão: para valorizar o próprio passe, recorrem a salamaleques e cacoetes insuportáveis. Não sou um antropólogo que mergulhou fundo nesse mundo de coachs, mas tenho um tantinho de discernimento para notar alguns pontos interessantes.

Há os coachs tranquilos, que recorrem à voz aveludada. Sempre falam baixo. Transformam cada gesto em obra de arte. Gostam de encontrar seus clientes em cafés da moda. Conversam melosamente com todos os funcionários do estabelecimento. Enquanto o cliente não chega, distribuem pepitas de sabedoria. Falam, nesses minutos de espera, do ponto certo do café e da consistência da massa da empadinha. Ainda enquanto esperam o cliente, nos momentos de silêncio, olham pra frente, mirando um horizonte imaginário.

Quando o cliente chega, o coach tranquilo dá um abraço apertado. O olhar é magnetizador. O sorriso é o emblema da consciência tranquila. É a encarnação do amigo fofinho e sábio. Enquanto o cliente gesticula mais efusivamente, o coach tranquilo o observa com a cabeça levemente inclinada para o lado. As mãos formam uma espécie de pirâmide sobre a mesa. Ele aguarda o término da ladainha. Só então oferece suas palavras de ouro. Hipnotizado, o cliente bebe com sofreguidão o discurso. E tudo termina bem. Abro mão de reproduzir as palavras do coach tranquilo. Fim de ano não é uma época das mais fáceis, e o leitor desta coluna não merece ser atazanado.

Há os coachs mais efusivos. O número deles cresceu nos últimos tempos. É mais fácil encontrá-los em vídeos que circulam pela internet. Eles querem ser a antítese do coach tranquilo. Eles descobriram que a vida é guerra e ferocidade. Sabem que o cliente deve -- perdoem a expressão, mas ela é recorrente -- ter “a faca nos dentes”. Suas palestras são repletas de urros, suor e lágrimas. A performance mistura psicanálise de gibi com crossfit. É um desfile de fortões e fortonas batendo palmas e dando uns tapas na parede. Quando eu vejo esses vídeos, fico esperando o momento em que o palestrante apontará um rifle para a plateia.

Não quero reduzir a complexidade das coisas. Mencionei dois temperamentos extremos de coachs. Há muita coisa entre uma ponta e outra. Convém lembrar que há coachs para tudo atualmente.

Você é meio bagunceiro com o seu guarda-roupa? Saiba que tem um coach prontinho para mostrar como ajeitar os cabides, as roupas íntimas, as roupas de frio, as roupas tropicais e a ampla gama de calçados. Você é desleixado com as finanças? Saiba que tem um coach prontinho para mostrar que gastar uma parcela significativa da sua renda em aparelhos celulares e jantares no restaurante japonês não é um negócio dos mais prudentes. Você é dotado de uma personalidade arredia, irritadiça? Saiba que tem um coach prontinho para mostrar que você não vive numa cabana na Sibéria e que vale a pena dar “bom dia” e “boa tarde” para as pessoas. Você tende a ver somente as desgraças da vida? Saiba que tem um coach prontinho para mostrar o sorriso da criança, o canto da cotovia e aquela prainha isolada que renderá umas cinco horas de caminhada e umas quinhentas picadas de borrachudo.

Ataco os coachs, mas recorro a eles. Não os coachs que mencionei acima, óbvio. Meus coachs, que chique!, são dos EUA. Philip Marlowe e Sam Spade, protagonistas de romances de Raymond Chandler e Dashiell Hammett, são ótimos conselheiros. Vira e mexe, as armas estão apontadas para eles. Eles precisam lidar com gente casca-grossa. E são capazes de fazer piadinhas no calor da hora. Eis belos casos de sabedoria.