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Brasil 2020: um relato

04 de Setembro de 2020 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

(Texto encontrado no ano de 2264)

Em 2020, no início do ano, os cidadãos de vários países tocavam a vida normalmente. Foram aparecendo as primeiras notícias preocupantes vindas da China. Pouca gente deu bola.

Em 2020, poucas semanas depois das primeiras notícias vindas da China, os casos foram pipocando em muitos países. O pensamento mágico ainda estava prevalecendo. Não foram poucas as pessoas que disseram que aquilo seria fogo de palha.

Em 2020, ainda nos primeiros meses do ano, ficou evidente que o fogo de palha teria tudo para ser um incêndio horrendo. Ainda assim o pensamento mágico minimizava tudo: “não é uma doença tão grave assim”.

Em 2020, ainda nos primeiros meses do ano, a ficha caiu para muita gente. Vimos trabalhadores chineses da área de saúde usando roupas que pareciam ter saído de um romance barra-pesada de ficção científica. Em poucos dias, a Itália e a Espanha tiveram de lidar com o pior dos pesadelos: a gestão de cadáveres. Muita gente ficou com um nó na garganta ao ver caminhões militares repletos de caixões.

Em 2020, ainda nos primeiros meses do ano, uma parte não desprezível da população brasileira apostava suas fichas no nosso clima quente. O vírus seria agressivo em climas mais frios. Que sorte a nossa.

Em 2020, ainda nos primeiros meses do ano, surgiram os primeiros casos no Brasil. A população precisava ser acalmada. Não entrem em pânico. É uma gripe como outra qualquer. E números otimistas foram pulando da cartola.

Em 2020, mais para o meio de março, decidiu-se que algo precisaria ser feito para frear o avanço do vírus. As quarentenas foram decretadas. A novidade da coisa fez com que a adesão fosse surpreendentemente alta em muitos lugares. O pensamento mágico -- sempre ele -- dizia que tudo seria resolvido em poucas semanas. Pouca gente falava em máscaras.

As semanas foram passando no primeiro semestre de 2020. Os números só pioravam. Paciência tem limite. As redes sociais bombando com tratamentos alternativos. Muita gente deu uma bicuda no isolamento social. E os novos casos explodiram. E as mortes explodiram.

Em 2020, muitos brasileiros passaram a achar normal o número de óbitos da pandemia. Cálculos marotos foram aparecendo para mostrar que estávamos no lucro. Muita gente caiu nessa. Sempre tem muita gente para cair nessas coisas.

Em 2020, ainda no primeiro semestre, muitos brasileiros decidiram que era possível “matar o vírus no peito e sair jogando”. Evidente que muita gente não teve opção. Mas muita gente teve. E aí algo muito curioso ganhou força: o orgulho de caminhar na corda bamba. Algo do tipo: eu tenho condições de não ficar zanzando por aí, mas eu sou machão e vou mostrar que não estou nem aí.

Ao longo de 2020, o comportamento “eu sou machão e não estou nem aí” ganhou um número espantoso de adeptos. Esse tipo de comportamento aconteceu com mais força em países com educação precária. É inevitável. O machão em pauta não consegue compreender que o que está em jogo não é algo tão simples como “eu sou forte e o vírus não me derruba”. De fato, muitos casos são leves ou assintomáticos. Faltou avisar ao sabichão que com saúde de ferro e tudo mais ele não deixava de ser vetor. Egoísmo e ignorância nunca deram bom casamento.

Ao longo de 2020, as redes sociais mostraram que a empatia é a mais distante das miragens. Muito se falou nela ao longo de 2020. A palavrinha mágica rendeu comerciais fofinhos e postagens de aquecer o coração. Faltou, como sempre, executar o que se prega. Muita gente morreu por conta da Covid-19 no Brasil em 2020. Muita gente passou semanas tendo de suportar internações atrozes em UTI. Muita gente perdeu parentes e amigos maravilhosos. Isso não bastou para os que encaram as redes sociais como desculpa para compensar uma vida medíocre. Em 2020, abundaram os comentários de empáfia, os comentários de negação, os comentários de menosprezo à vida de forma geral.

Em 2020, a nossa necrofilia foi escancarada.