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A trapaça da memória

14 de Fevereiro de 2020 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Meu vício é fuçar, na internet, os comentários que aparecem nas páginas de notícias. Dá pra escrever um “Guerra e paz” com o que encontro ali diariamente. Não seria absurdo afirmar que seria um épico da imbecilidade.

É possível reconhecer padrões naquelas montanhas de raiva. Depende, claro, da notícia que aparece na página. Se é algo a respeito do “Big Brother Brasil”, eu me preparo para centenas de “nossa, mudou a minha vida” ou “nossa, mudou o Brasil”. Como se um texto sobre o BBB tivesse a função de mudar a vida do sujeito.

Se é algo que trata do nosso trepidante cenário político, eu me preparo para o tiroteio verbal que rende homenagem ao Quentin Tarantino: baixaria e exagero. Sem contar os robôs que dão o ar da graça nessas horas.

Se é algo a respeito de depressão, eu me preparo para os comentários de sábios durões que afirmam que a vida é luta. Que depressão é frescura. Que depressão é mimimi. Que antigamente é que era bom. Sábios durões e nostálgicos em busca do tempo perdido. Proustianos da gema.

Se é algo a respeito de alguém que ficou ofendido por um comentário preconceituoso, eu me preparo para os comentários que descem a marreta no “politicamente correto”. Tente conversar com um desses comentaristas e perguntar o que eles entendem por “politicamente correto”. A resposta será uma bela ilustração do conceito de vazio.

Interessante é que, nos comentários aos mais diversos assuntos, rola um olhar terno para os anos 80. Passei a minha infância ali, vendo o Sarney e os fiscais do Sarney. Difícil crer que aqueles anos foram idílicos.

Evoluímos? Depende. As coisas nem sempre são lineares. Pioramos em algumas coisas e melhoramos em outras. Não temos mais figuras como o Ulysses Guimarães, o que é sinal de decadência moral. Hoje os humoristas precisam ter mais cuidado na hora de espezinhar os que mais apanham na vida, o que é sinal de evolução. É covardia sacanear quem já toma porrada todos os dias. Quero ver mexer com as figuras de maior calibre.

O símbolo da nostalgia dos anos 80 é o apartamento onde a Patrícia, o João Pedro e eu moramos. Acho que ele foi construído em 1984. Ele é bem dividido e espaçoso. Gostamos dele logo de cara. Mas ele tem o emblema máximo dos anos 80: as dependências para empregados. O banheiro é minúsculo. O quartinho não dá pra nada e não tem janela. O apartamento fica em Sorocaba, e não em Estocolmo. É um triste calor nas tais dependências para empregados.

Era comum, nos anos 80, que os empregados morassem nas tais dependências. Pouca gente achava estranho. Ué, o patrão dá comida, cama, banheiro e uns caminguás. Qual é o problema? “Ela é como se fosse da família”. Uau, que bacana! Já dá pra dormir em paz. Pouco importa se a pessoa tinha que ficar à disposição o tempo todo. Dane-se se a pessoa tinha família morando lá nos cafundós. Dane-se se a pessoa via os filhos uma vez ou outra no mês.

Houve uma gritaria monumental quando tentaram regulamentar as relações trabalhistas dos empregados domésticos. Projeções apocalípticas foram surgindo. Teríamos milhões de desempregados. Os lares seriam danificados irremediavelmente. Fim dos tempos. Hoje, pelo que posso perceber, houve um enfraquecimento desse lance de empregado doméstico morar na casa do patrão. Sinal de que evoluímos em alguns pontos.

Difícil sentir saudade de um treco desses. Os comentaristas da internet parecem sentir. E lamentam a diminuição das piadinhas que ferem. E lamentam a diminuição de um monte de coisas.

Fui feliz naqueles tempos. Pô, eu era criança! As coisas chegavam até mim depois de um monte de filtros. Tive uma infância feliz. Mas isso não impede que eu reconheça as aberrações daquela época. A memória sempre será passional e traiçoeira.