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A literatura de Svetlana

21 de Setembro de 2018 às 12:07

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Svetlana Aleksiévitch ganhou o prêmio Nobel de literatura em 2015. Muita gente estranhou. Svetlana não era tão conhecida assim. Mas isso é o de menos. O que trouxe mais estranheza foi uma característica fundamental de seus livros: a “não ficção”. Esperava-se que o Nobel de literatura contemplasse poesia ou obras de ficção.

Não deixa de ser interessante. O texto literário ou é poético ou de ficção, fica por isso mesmo? Nada mais fora desses limites? Há quem diga que é assim mesmo: poesia ou ficção. Mas o que fazer com uma crônica autobiográfica? O que fazer com a borboleta amarela de Rubem Braga? E as memórias de Pedro Nava? E a magistral biografia de Dostoiévski, escrita por Joseph Frank? E os ensaios certeiros de George Orwell? E as grandes reportagens?

Vocês não precisam concordar comigo, mas acho que os textos que eu acabei de citar são literatura de primeira grandeza. Literatura é a soma do que se conta com o como se conta. A ficção é uma maravilha do engenho humano, mas a observação da realidade também o é.

Voltando ao caso de Svetlana Aleksiévitch. Eu acho que ela mereceu o Nobel de literatura? Acho que sim. Seus livros publicados no Brasil (“Vozes de Tchernóbil”, “A guerra não tem rosto de mulher”, “O fim do homem soviético” e “As últimas testemunhas”) contam magistralmente alguns dos acontecimentos mais tenebrosos do século XX. Não há dúvidas de que a revolução de Svetlana é o como contar. Sua voz aparece muito pouco nos livros. É que ela investe pesado na escuta minuciosa.

Ela dedicou anos de sua vida percorrendo os vastos territórios da ex-URSS. Conversou com milhares de pessoas, das mais variadas idades e camadas sociais. Ela foi o ouvido que redimiu muita gente.

Ainda que Svetlana pouco apareça, fica evidente que ela soube conduzir as conversas com sabedoria. Difícil explicar. Tato, talento, profissionalismo, compaixão, empatia? A soma de tudo isso. E o que fazer com a montanha de falas? Aí entra outra marca de Svetlana: a edição criteriosa do material. A sucessão de depoimentos segue estrutura rigorosa. Há momentos de dor profunda, insuportável, e há momentos de humor redentor. Há a mescla de gente tagarela com gente concisa. Os desiludidos e os otimistas dão as caras. É a boa e velha história do ponto e do contraponto.

Não é fácil descrever a sensação do leitor ao sair de um de seus livros. Poucas obras trazem cenas tão horrorosas e vergonhosas. Impossível conter as lágrimas. Peguemos como exemplo seu último livro publicado no Brasil: “As últimas testemunhas”. São dezenas de depoimentos de pessoas que passaram a infância no período em que a Alemanha invadiu a ex-URSS. São adultos relembrando aqueles anos horrorosos. Foram crianças que viram suas famílias sendo trucidadas pelos nazistas. Foram crianças que passaram fome. Foram crianças que perderam os brinquedos prediletos. Crianças que tiveram de crescer por uma questão de sobrevivência. Crianças que viram corpos apodrecendo em valas. Crianças que perderam tudo o que mais amavam. Seus corpos e suas almas foram feridos. Mas sobreviveram. E são crianças grandes, que engasgam na hora em que se lembram do pai abatido a tiros ou da mãe massacrada a golpes de porrete. Essas vozes do sofrimento são a marca dos livros de Svetlana. Causam horror porque são pessoas comuns. Pensamos que aquilo tudo poderia acontecer conosco.

Os livros de Svetlana vão fundo na História. Não do jeito tradicional e distanciado. Não pelo estilo polido. Pouco se fala das grandes figuras, das mutretas políticas. São as vozes do povo. Os detalhes são comoventes. É a boneca esquecida na hora da fuga. É o gato enforcado na porta de uma das casas. É o vestido tingido só pela metade. Ler essas coisas muda a maneira como encaramos a vida. É que a vida não é grandeza. Muito pelo contrário. O principal está naquilo que costuma ser desprezado. As tragédias históricas são tragédias porque machucam as crianças de Svetlana, por exemplo. Ao individualizar a questão, Svetlana homenageia a humanidade.

O que mais podemos esperar da literatura?