‘Merendas e afetos’ dá voz e vez a mulheres anônimas

Publicação traz 26 narrativas biográficas, todas de pessoas negras de diferentes estados brasileiros

Por Cruzeiro do Sul

Sandra Coleman: "São pessoas invisibilizadas no trabalho, que sequer seus nomes sabem"

 

“Aprendi a cozinhar cozinhando e peguei tanto gosto pelo trabalho que a minha cozinha estava sempre limpinha. Eu tinha um carinho e um cuidado muito grande pela cozinha”, conta a merendeira aposentada Maria das Graças Soares Barbosa, que trabalhou no Colégio Estadual “Maria Polidoro”, em Canoas, no Rio Grande do Sul, entre 1989 e 2013. “Até hoje encontro alunos que me reconhecem e falam ‘tia, como era boa a sua merenda’”.

A história de Maria das Graças é uma das que fazem parte do livro “Merendas e Afetos”, organizado por Sandra Regina Barbosa Soares Coleman. A publicação traz 26 narrativas biográficas, todas de pessoas negras de diferentes estados brasileiros Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul e do Distrito Federal.

O livro reúne histórias de vida de 26 mulheres e homens negros, aqueles que, muitas vezes, são chamados de tias e tios: a tia da merenda, a tia do corredor, o tio do portão, o tio da limpeza. São funcionários que costumam conhecer os estudantes às vezes melhor que os próprios professores e que são fundamentais para o funcionamento das escolas. O livro pretende dar nome e sobrenome para essas pessoas, trazendo a história de vida de cada um, indo muito além de apenas tia ou tio.

“Apesar de não ter muito estudo, trato todo mundo bem, aprendi com a vida”, diz outra biografada, Fátima Souza de Oliveira, conhecida carinhosamente como Fatinha, responsável pela limpeza do Centro Integrado de Educação Pública (Ciep) 370 - “Professor Sylvio Gnecco de Carvalho”, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro.

“Ser tia da limpeza pra mim é gratificante. Com os alunos, aprendo e ensino. Às vezes, me sinto a segunda mãe deles. O carinho e admiração é recíproco. Sou muito grata pelo trabalho que tenho”, diz, no livro, Fátima.

Tanto Maria das Graças quanto Fátima são porta-vozes de histórias vividas por muitas mulheres negras. “Sofri racismo em uma das casas em que trabalhei, em que a irmã da patroa disse que não gostava de gente preta. De preto só gosto de feijão”, lembra Fátima no livro. Ela conta também que, na escola, encontrou amparo: “Quando trabalhei em uma escola particular, um aluno me chamou de preta burra. A diretora era negra, bem estruturada, não se conformou, chamou os pais dele e fez ele pedir desculpa na frente dos pais, e ele nunca mais fez isso.”

Mesmo em um país onde as pessoas negras representam 55,5% da população, Maria das Graças conta que sofreu racismo.

“Uma criança derramou a merenda no chão, e a professora falou: “Vamos, negra, limpar é o seu serviço”. Isso na frente das crianças. Engoli quieta e depois de servir a merenda procurei a Neide, a minha diretora, uma pessoa abençoada, que me defendeu”, diz Maria das Graças na publicação.

Sandra Coleman

O livro é o terceiro de Sandra Coleman, também autora de “Mulheres negras brasileiras - Presença e poder”. Em suas obras, Sandra reúne narrativas de pessoas negras, sempre escritas por mulheres negras.

“Eu vejo essas merendeiras, inspetoras, elas são invisibilizadas, elas são invisíveis para a direção escolar. Muitas, a direção escolar ou os professores não sabem o nome delas, que não participam ativamente das decisões da escola. Eu acredito que elas sabem muito mais sobre os alunos do que os professores porque têm um convívio maior com os alunos, porque estão ali vendo o que os alunos estão fazendo no corredor. Quando eles vão para a merenda, a tia da cozinha está ali, ela está vendo tudo”, diz a autora do livro. (Da Redação, com infomações da Agência Brasil)