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Rege, cineasta que quer modificar a visão da periferia

Aos 37 anos, ele é autor do filme "Preto no Branco", um longa de fortes tons raciais e disponível no Youtube

08 de Janeiro de 2022 às 02:32
Cruzeiro do Sul [email protected]
Valter Rege ensina jovens das margens sociais como lidar com a linguagem das redes e a fazer produções audiovisuais
Valter Rege ensina jovens das margens sociais como lidar com a linguagem das redes e a fazer produções audiovisuais (Crédito: DIVULGAÇÃO)

Cineasta por natureza, produtor por instinto e blogueiro por consequência. Valter Rege tem 37 anos, a maioria vivida na Vila Clara, divisa de São Paulo com Diadema, no extremo sul de São Paulo, onde as casinhas sobrepostas vistas de sua laje são usadas, em geral, como cenários de violência.

Filtrado por pelo menos três redutores sociais estigmatizantes -- gay, negro e periférico --, Rege chega longe com suas produções. Uma delas, o filme “Preto no Branco”, disponível em seu canal do YouTube, é um longa de fortes tons raciais que mostra um menino negro detido injustamente pela polícia falando tudo o que pensa na delegacia. A produção rodou por festivais na Índia, em Berlim e dois no Canadá, consagrando, além de “Preto no Branco”, a trajetória de Valter Rege.

Rege aprendeu a fazer cinema no “mundo branco” para voltar à sua Vila Clara, depois de dar cada passo com muita estratégia. Hoje, ele ensina aos jovens das margens sociais de sua vizinhança como lidar com a linguagem das redes sociais e a fazer produções audiovisuais que podem ativar uma roda econômica interessante. “É o que eu chamo de ’hackear o sistema’‘, diz. ‘Passar para os meus o que eu aprendi.”

Em vez de conquistar uma liderança e despontar nas redes sociais para atrair milhões de seguidores como “blogayrinho de favela”, como se intitula, Rege quer ter concorrência. “É para isso que dou os cursos e faço palestras. É preciso ter concorrência para ter mercado.” MC’s e rappers já o convidam para dirigir seus clipes e aprendem como elaborar um roteiro.

Os posts de Rege sobre negritude, sexualidade e cinema atraem anunciantes que descobrem a importância de fazer suas marcas saírem do gueto econômico às avessas, o consumir da classe média branca.

É do que ele ganha de empresas como iFood, Mercado Livre, Magazine Luiza, Bradesco, 99 App, Spotify e Assaí Atacadista que consegue pagar seu aluguel de R$ 900 mensais e seu sustento. “Aprendi que não existe meritocracia, não para quem vem de onde venho. Não adianta, não temos as mesmas condições nem quando já estamos no mercado de trabalho.”

Câmera

Filho de pai metalúrgico maranhense e mãe empregada doméstica do Piauí, Valter Rege nasceu em São Paulo, em um cortiço no bairro de Moema. Ao chegar à favela da Vila Clara, aos 12 anos, teve medo, e aos 13, sem nunca ter feito um curso, escreveu seu primeiro roteiro, um filme de terror chamado “Estampido”.

Sem computador nem dinheiro para xerox, escreveu o texto em folhas de caderno e enviou para uma produtora. Quem leu gostou, e fez as folhas chegarem ao estúdio da preparadora de elenco Fátima Toledo.

“O que você quer?”, quis saber Fátima. “Eu quero R$ 1 milhão para fazer meu filme”, disse Rege.

Não era bem assim, mas ele ganhou um curso de roteiro e um emprego de office-boy, o que garantia, à época, R$ 130 por mês. E comprou sua primeira câmera, uma HandCam Vision, da Sony, parcelada em 24 vezes.

Um ano e meio depois, Rege deixou a produtora para ganhar mais. Trabalhou na Livraria Saraiva por um ano, serviu a Aeronáutica em 2003 e conseguiu um emprego como atendente na videolocadora Blockbuster. “Só saí porque tinha de indicar filmes ruins.”

O cinema chegou mais perto no dia em que decidiu fazer um curso gratuito de roteiro em tempo integral, o que o impedia de trabalhar. Caminhava 1h30 para chegar ao curso e 1h30 para voltar.

Ao terminar, percebeu que precisava da faculdade. “Mas, como pagar?” Se trabalhasse em uma, pensou, conseguiria um desconto. Rege entrou na recepção da Faculdade Paulista de Artes, que o incluiu no programa de bolsas.

Ao chegar ao mercado de trabalho, sentiu o peso da origem em um meio de poucas concessões. “Houve uma discussão, e um diretor me chamou de macaco. Aquilo me desestruturou.” Sem produtora, mas com o filme nas mãos, Rege começou a trabalhar sozinho. Inscreveu o filme nos festivais e fez uma vaquinha para pedir apoio. O Bradesco ajudou, a Air Canada cobrou R$ 1,2 mil pela passagem de ida e volta e um bem-aventurado mecenas pagou sete dias em um hotel no Canadá.

Ao olhar ao redor, Rege sabe que sua câmera é uma conquista, mais que pessoal, de classe. Afinal, por décadas, foram cineastas brancos que contaram todas as versões de uma vida que eles nunca viveram. “Agora, é importante saberem que a gente que mora aqui não produz só violência, mas muita poesia.” (Da Redação com Estadão Conteúdo)